26 outubro 2003

Portugal sacro-profano - IX: O que é feito da Barbarian Girl ? E das operárias de Castelo de Paiva ?

Clarks ou: as multinacionais têm alma ?



Uma das habituais perguntas da Bárbara, e esta por sinal muito pouca metafísica. Perdi-lhe o rasto, à Bárbara, aliás, Barbarian Girl. Só lhe conhecia o nickname ou o nome de guerra, além de uns escassos dados biográficos que ela deixava transparecer nos seus posts, habitualmente escritos em letra minúscula, em estilo telegráfico: lembro-me, por exemplo, que morava em Lisboa, tinha uma avô galega e morava nas Avenidas Novas; pelas minhas contas, hoje deve andar no 3º ano de biologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, se é que não chumbou nenhum ano. Nunca nos cruzámos por aquelas ou outras bandas. Trocámos apenas alguns e-mails. Simpatisante bloquista confessa (se bem me recordo) e feminista militante (tanto quanto me foi dado deduzir das ideias que expunha), participou em alguns temas de discussão que eu próprio suscitei ou em que intervi, nos saudosos Fóruns do Publico.pt > Cidadania. Um desses temas de discussão foi sobre a "Clarks: ou as multinacionais têm alma?".



Revisitei ontem aquele cantinho do ciberespaço, como eu lhe chamava. Com alguma saudade, diga-se de passagem... Dela e doutros cibercidadãos: a Isabel Coutinho, o Migoma, o Jota Lourenço, o Cibernocturno, o Dr. Hipócrates, o Fiatux, a Megane, a Raquel, o Eugénio Rosa, a Eva Luna, o J.B. Mendes, o Queirós, o Eljump, o Deus das Moscas, o Bafo de Nuca e outr@s...



Reproduzo aqui uma das intervenções da Bárbara (14.01.2003). Incisiva, contundente, agressiva como sempre. Mas também generosa, como sempre, uma generosidade que é(era) própria dos verdes anos mas sobretudo de um já maduro sentido de cidadania...



Confesso que gostaria de saber por onde pára ela, a Barbarian Girl. E já agora pergunto a quem me souber responder: o que é feito daquelas mulheres (e homens) que a Clarks mandou para a rua ? Na voragem mediática dos acontecimentos do dia-a-dia, Castelo de Paiva e a sua gente só ainda hoje são notícia nos media por causa da tragédia da Ponte de Entre-os-Rios e do julgamento dos seus presumíveis responsáveis... Sei que perder o emprego ou a vida não é a mesma coisa. Em todo o caso, pelo seu impacto social e económico, o despedimento colectivo do pessoal da Clarks, em Castelo de Paiva, foi notícia nacional por uns breves dias. L.G.

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castelo de paiva ? sabes onde fica ? eu não...



uma desgraça nunca vem só, dizia há dias uma operária da multinacional do calçado que, depois de arouca, decidiu fechar a sua segunda unidade fabril em castelo de paiva, estando em vias de mandar para o desemprego cerca 600 trabalhadores. a acrescentar aos outros 300 e tal de há dois anos. primeiro, foram as minas do pejão que encerraram de vez; depois foi a tragédia de entre-os-rios; e agora é a clarks que se muda, de máquinas e bagagens forradas a euros, para outro paraíso capitalista. para outra terreola qualquer, talvez parecida com castelo de paiva. talvez do leste europeu, com tabuleta escrita em caracteres eslavos; não importa onde, desde que haja sempre gente disposta a vender a sua força de trabalho por um punhado de cêntimos. é o circo trágico-cómico das multinacionais que montam e desmontam fábricas, em qualquer parte do mundo. faz-me lembrar os recintos das touradas desmontáveis no verão.



não creio que as multinacionais tenham alma. não creio que os tecnocratas que as governam tenham alma. ou que saibam, no mínimo, compreender a raiva das pobres mulheres operárias que entraram tarde para o mundo do trabalho. e que agora se sentem usadas, abusadas, deitadas fora, velhas, traídas. deve ser esse o sentimento de se ser despedido colectivamente. e no entanto o mundo é assim, dizem-nos os brilhantes teóricos neoliberais. e não há volta a dar-lhe. os cães ladram e a circo das multinacionais passa. são elas que governam este mundo. são elas que dão e baralham as cartas. são elas que nos vestem e calçam e criam os mitos que nos alimentam. são elas que são donos do destino de milhões e milhões de pessoas. pobres diabos e diabas, contentes hoje por terem pão para a boca. desesperados amanhã porque já não sabem onde vão buscar com que pagar as prestações da casa e do carro.



fiquei impressionada ao ouvir o presidente da câmara de castelo paiva dizer que o total de despedidos são 25% da força de trabalho industrial do concelho, 3% da população do concelho. e onde estão os líderes do meu país, levando um pouco de conforto e de esperança àquela pobre gente, como há dois anos atrás? eu não sei onde fica castelo de paiva, mas o presidente da república, o primeiro ministro, o ministro do trabalho, o novo patrão do investimento estrangeiro, o senhor miguel cadilhe, deve saber onde fica. dizem que a esperança é a última coisa a morrer. mas a verdade é que também morre. e infelizmente vai morrer para os trabalhadores da clarks, uma multinacional sem alma.



fui espreitar o site” dos gajos. nem uma palavra em português. nem uma palavra em qualquer língua para os seus “colaboradores”. lá dentro (do sítio), dizem-me, “a world of comfort and style awaits you”… valores como a responsabilidade social, o respeito pelos direitos de quem trabalha ou o cumprimento da palavra dada a uma comunidade inteira, parece que são coisas que não constam dos “core values” desta multinacional. valores ? são para pisar pelas botas altas das manequins no estrado da alta moda... e depois quem sabe onde fica castelo de paiva, uma minúscula peça do puzzle da europa das multinacionais ?



barbara(mente) revoltada e deprimida.





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