08 janeiro 2004

Socio(b)logia - IV: A tecnicodependência

Eu, blogador, me confesso: sei agora até que ponto sou um tecnicodependente. Em boa verdade, sou um pobre tecnicodependente. Estive dois dias sem computador e, imaginem!, foi como se eu tivesse partido as pernas, o mundo desabado, a vida perdido o seu sentido.

A placa gráfica do meu PC, de topo de gama (talvez a peça mais cara do meu brinquedo!), bifou, e o resto da máquina recusou-se a trabalhar. O material é assim. Neste mundo é o material que tem razão. Aliás, o material tem sempre razão, dizem os engenheiros. Mas, eu, tecnicodependente, é que não estou nada pelos ajustes. Tive um ataque de nervos, digno de um verdadeiro primata.

Triste episódio este, ridícula situação a minha... Um homem já não é mais mais o que era, sobretudo depois de regressar vivo, mas não incólume, da guerra (colonial). É duro, mas tenho de confessá-lo.

À parte este registo intimista, deixem-me dizer-vos que felizmente valeu-me, nesta triste ocasião, a pronta assistência do meu fornecedor e sobretudo a amizade do João. O meu PC estava dentro da garantia e eu tive um tratamento VIP. Por sorte, havia duas placas gráficas do mesmo modelo e marca em armazém. Mas por azar nenhuma delas funcionava. Dizem-me que é um erro de produção num lote inteiro, um erro de série. Eu digo que é falha grave ou ausência total de garantia de qualidade por parte do fabricante... Enfim, à terceira tentativa lá se optou por um novo modelo de placa gráfica, de outra marca, mas igualmente made in China.

Podiam ter-me dito: o seu PC vai para arranjar e, quando estiver pronto, a gente telefona-lhe. Mas não, deram-me um tratamento VIP... Tenho pena de não poder publicitar aqui os seus nomes, o da empresa e a dos seus colaboradores que me atenderam e resolveram o meu problema. Mas a minha vontade era mesmo elegê-los os portugas da semana.

Devo dizer-vos que é gente do melhor. E bem precisava o país de multiplicar o seu número por cem. Juntando mais 10 AutoEuropas tínhamos muitos dos nossos problemas colectivos resolvidos. Para já tudo somado, eram mais uns 150 mil postos de trabalho com um significativo peso no nosso PIBezito, graças ao seu considerável valor acrescentado bruto (VAB).

Já que estou aqui hoje, e para mais em maré de confidências, direi que o que é bom no tratamento VIP é tu sentires mais do que cliente, é sentires-te gente. Eu gostei de sentir-me gente esta manhã, mesmo tendo perdido uma manhã da minha vida à espera que resolvessem o meu pequeno grande problema. Sentir-se gente é uma coisa que começa a faltar neste país. Uma pessoa sentir-se gente faz bem à  nossa auto-estima, diz o meu psicólogo que passou a substituir o meu confessor do tempo de menino e moço.

Quanto ao problema técnico que causou a minha infelicidade durante dois dias, ele é apenas um dos muitos efeitos perversos da globalização. Graças à mão de obra quase escrava da China, a globalização operou este espantoso milagre do embaratecimento do material electrónico, incluindo os PC e os respectivos periféricos. Lembro-me do primeiro PC que comprei há mais de um dúzia de anos... Era um oito seis e troca o passo! Custou-me os olhos da cara. Hoje nem para peça de museu o queriam em lado nenhum. Já foi para o lixo, depois de anos passados no limbo do sótão das velharias.

Deixem dizer-vos que me separei dele, sem uma ponta de emoção: estava velho, obsoleto, ultrapassado. Foi para o sótão, foi para o lixo. Foi tratado afinal como se tratam hoje os velhos neste país. Já o mesmo não aconteceu à minha velha máquina de escrever: esqueci o nome da marca e do modelo, mas ainda hoje a recordo com a ternura dos meus 17 verdes anos... E que saudades do martelar seco das pequenas teclas!

De qualquer modo, protesto contra todas as formas de tecnicodependência, seja a do carro, a do telemóvel, do micro-ondas, do multibanco ou do PC. Um dia o mundo desaba mesmo e a gente não sabe sequer escrever a giz no quadro de ardósia da nossa velha escolinha, plantar umas pencas, enterrar um morto, cuidar de um vivo ou fugir a sete pés dos nossos predadores.

É um cenário aterrador mas perfeitamente verosímil. A regressão (económica, social, tecnológica, polí­tica, cultural, humana...) tem-se passado em muitos países à  nossa volta, nas nossas barbas, da antiga Jugoslávia ao Iraque. Perdi o contacto com as minhas amigas croatas e sérvias, todas elas médicas. Uma amizade que fiz em Valência em 1991. Estava eu para partir para Zagrebe, para frequentar um curso de verão, quando eclodiu a guerra civil nos Balcãs. Acabei por ficar o tórrido mês de Agosto em Valência, traduzindo para inglês as más notícias que nos chegavam da Jugoslávia. Ironicamente, em Valência ainda se faziam sentir, na memória dos mais velhos, as marcas cruéis da guerra civil espanhola de 1936-1939.

Passados estes anos todos, perdi-lhes o rasto, às minhas amigas jugoslavas, uma delas sérvia casada com um bósnio... E sobretudo tenho pudor em perguntar por aí se elas ainda estão vivas, se estão bem, se não foram violadas, fuziladas, enterradas numa vala comum... E se as encontrassse não saberia como perguntar-lhes, olhos nos olhos, se elas tinham conseguido voltar à  vida depois do pesadelo que foi o desmembramento do seu paí­s e, em muitos casos, das suas famílias...

Rezo, ao menos, para que elas tenham voltado a sorrir e a ter esperança. Mesmo sem computador, e-mail, webpage ou blog. Pensar nas desgraças piores que as nossas sempre alivia um pouco. É safado, mas alivia.

Sem comentários: