21 novembro 2004

Blogarias - I: Portugal, porta do cavalo da Europa

Blogarias. Papéis velhos, desenterrados do baú, literalmente do sótão da casa e da memória. Outos tempos. Outros estados de alma. Em 1976, o mundo ainda era a preto e branco, não havia televisão a cores. Nem computadores pessoais. Escrevia numa maquineta de dactilografar, levezinha, daquelas portáteis. Era estudante de sociologia. Trabalhava na Rua da Conceição e apanhava o agora famoso 28 para ir almoçar a casa. Morava nas traseiras da Infante Santo, no baiiro da Lapa dos bores. Tinha posto um anúncio no "Página Um", tentando a sorte de arranjar uma casa ou parte de casa. Ainda me recordo que o anúncio (pessoal) começava assim: "A um capitalista que leia o 'Página Um' por engano". Arranjei uma parte de casa. Estudava à noite. Entretanto o ministro Cardia tinha mandado fechar o nosso instituto, o ISCPS. Em nome da normalização democrática. Tinham tirado o U ao velho ISCSPU, depois da queda do império. Sanearam as 'múmias'. Decapitaram o conselho científico. Os assistentes e os estudantes tomaram o poder. Nada que não se tivesse visto antes, noutros tempos, noutros lugares. O poder tem horror ao vazio. Fui para o ISEG. Outros como o Salgueiro Maia ficaram por lá, na Guerra Junqueiro, para acabar a antropologia. Mas os sociólogos e os economistas foram corridos. Acabei, no 3º ano, por ir parar ao ISCTE do Sedas Nunes. Algumas destas blogarias são dessa época, de 1976. Outras são até mais antigas. Tinha-lhes perdido o rasto. Já não me reconheço totalmente no que escrevia na época. Mas não rejeito esses escritos nem vou branqueá-los.

tempo
outono de 1976
lugar
portugal porta do cavalo da europa

exercícios de estilo
atenção meus senhores isto é um assalto mãos ao ar
impressões de viagem no eléctrico estrela rua da conceição
fichas de leitura
escrita automática
contributo para um novo modo de produzir e de viver
faits divers
a ideologia que se consome todos os dias à mesa
o direito de cagar ao livre consagrado na constituição já
notícias necrológicas
histórias aos quadradinhos dum maginal-secante
boletim metereológico da revolução pra manhã
cartas clandestinas ou nem por isso
folha dominical para os dias cinzentos da semana
informações pidescas ou pós
relatório do crime
pequena enciclopédia da via sexual dos sete aos setenta anos
títulos de caixa alta
o tédio em tempo de paz
a imaginação para a prisão
recortes de A a Z
curriculum vitae oprimido e explorado
o livrinho cor de rosa dos maus pensamentos
transgressões íntimas
o elogio do colchão ortopédico
misérias e grandezas do(a) capital
blá blá
peças em 1 acto (sexual)
parecer sobre o estado calamitoso do reino
a arte de fugir ao fisco
os contos do vinho tinto
a autofagia ou a economia política ao alcance de todas bocas
proletas de todo o mundo (re)uni
os destroços das batalhas perdidas
dos últimos dois séculos
vous aimez marx
a angústia em papel celofane
poesia amor arte guerra solidão
solidariedade de classe revolução
misturem bem e bebam frio
haraquiri dum petit-bourgeois
aqui e agora
comem-se castanhas assadas
no jardim da estrela

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