25 junho 2004

Portugas que merecem as nossas palmas - X: Ricardo, herói (nacional) por uma noite

1. Eu que sei o que é que o meu ilustre colega de Coimbra, muitíssimo mais ilustre do que eu, o sociólogo Carlos Fortuna, pensa da onda de nacionalismo que por aí vai, na sequência do Euro 2004: é "barato, imediatista e pouco consistente", disse ele aos jornais.



Não me admiraria nada que logo a seguir um outro ilustre coimbrão, vedeta da rádio, da televisão e da psiquiatria, o Prof. Carlos Amaral Dias, viesse dizer precisamente o contrário: que o futebol funciona hoje, de maneira eficaz e eficiente, como o tal caldo de cultura onde se misturam e produzem todos os elementos identitários de um povo, de uma nação, de um país. Em Portugal, em Inglaterra e por aí fora.



Eu sei que ele, Carlos Fortuna, tem toda a razão sociológica deste mundo, mas nem por isso ele deixa de dar a impressão de ser um chato de um sociólogo. E a pior coisa que nos pode acontecer, a nós, sociólogos, é sermos uns chatos de uns sociólogos.



Os sociólogos são chatos, não só por causa da (i) sua lingauagem de pau (langue du bois, em francês), mas também por que (ii) costumam dizer coisas que ninguém gosta de ouvir, a começar pelas elites do poder: que o rei vai nu, por exemplo... Além disso, são chatos por que (iii) vêm estragar a festa do Zé Povinho.



Em Coimbra, no Porto ou em Lisboa, que são as três praças fortes do pensamento sociológico, há sociólogos chatos. Lucidíssimos mas chatos. Sejamos pluralistas: e porque não também Braga ? ou Évora ? Não quero, com isto, hierarquizar os pólos da sociologia portuguesa que, de resto, está bem e recomenda-se (E o Prof.  Carlos Fortuna é um dos nomes que honra a sociologia portuguesa, diga-se a talhe de foice).



2. Eu subscrevo inteiramente o que o senhor professor de Coimbra escreveu a este propósito: "Este nacionalismo [futebolístico] é pouco". Mais: "a bandeira custa um euro". Pior ainda: a bandeira é made in China. Trágico:  foi feita numa daquelas fábricas de vão escada, em que o trabalho é sinónimo de sangue, suor e lágrimas.



As tristemente famosas sweatshops dos chinocas foram há dias publicamente denunciadas pelos nossos grandes industriais do têxtil, como exemplos de dumping social. Nunca os vi, entretanto, preocupados com as sweat shops dos portugas, em Vale do Ave e outros paraísos do empreendedorismo lusitano, com a melhoria das condições de trabalho dos operários portugueses, com a protecção da saúde e da segurança do trabalho, com a sua qualidade de vida no trabalho, etc.

 

Como eu costumo dizer, se as nossas fábricas e outros locais de trabalho fossem ao menos "estábulos-modelos", os nossos operários e demais trabalhadores poderiam ser equiparados à melhor aristocracia dos porcos, dos perus, dos frangos ou das vacas...



A verdade sociológica mais profunda é que este é um "nacionalismo barato", afirmou o ex-presidente da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), em declarações à agência Lusa (Público, 11 de Junho de 2004). Eu acrescentaria: duplamente barato!



O meu ilustre colega sustenta que, "face à consciência nacional de um défice de resultados positivos (do país), os portugueses querem sucesso rápido, breve e imediato, e o futebol resolve-se em 90 minutos".



Ora, desse ponto de vista, o futebol "é fantástico, porque é a plena consciência nacional do fracasso", considerando que "há muita pouca coisa com que os portugueses se possam entusiasmar" (espero que o jornalista não tenha deturpado o pensamento do sociólogo).



Na opinião de Carlos Fortuna, existe em Portugal um "défice de nacionalismo e de auto-estima", e o país precisa de um nacionalismo "não tão imediatista e mais consistente do ponto de vista político".



Em suma, este é um recado, sábio, para o portuga de ejaculação precoce que espera o paraíso ao fim de 90 minutos de provação no inferno (há vários infernos: o dos dragões, o da luz, o de alvalade...).



3. Eu não gosto de fazer sociologia espontânea nem de me pôr em bicos de pés para aparecer em título de caixa alta. Quando muito, lá vou praticando a minha periférica e efémera socio(b)logia...



Mas se os doutos professores coimbrãos me permitem uma opinião de leigo ou, quando muito, de socio(b)logo, eu ficaria contente, se fosse psiquiatra ou até ministro da saúde, por os portugas deixarem de pensar, mesmo que por uns escassos momentos, no dramático fim de mês que, para cada vez mais portugas, tende a ser (ou parecer ser) pior que o fim o mundo...

 

O que de resto é compreensível, diga-se de passagem: (i) do fim do mundo nunca ninguém voltou para dar o dramático, pungente e irrepetível testemunho; (ii) e da terrível provação de tesos do dia 15 até ao fim do mês,  todos (ou quase todos) os portugas podem falar de cátedra...



Eu sei que o futebol não resolve este problema, nem nenhum outro problema dos nossos muitos problemas colectivos (estruturais, económicos, culturais, mentais...). Mas, que diabo!, faz bem a nossa auto-estima. Nem que seja por uma noite ou por umas horas!



Cibercaríssimo Carlos, deixe o portuga (i) sonhar, (ii) alienar-se, (iii) embebedar-se, por uma uma noite... Deixe o portuga tuga (iv) pensar que é o maior do mundo só por que às veze até é capaz de enfiar a bola na baliza... A ressaca do dia seguinte é terrível e aí você pode aplicar a sua pesada, pesadíssima, lucidez de sociólogo, o rigoroso método do Durkheim, do Weber ou do Bourdieu...



4. Leio nos jornais que, em Coimbra, a procura das bandeiras portuguesas tem sido tal que se encontra praticamente esgotada, nomeadamente nos quiosques:



"Esgotaram há três, quatro dias", disse à Lusa José Maria Saraiva, da Tabacaria S. Cruz, uma das mais centrais na cidade.A varanda, a janela, a porta, o fio da roupa, o chapéu-de-sol que abriga o engraxador de sapatos, quase tudo serve para expor a bandeira nacional, na cidade de Coimbra, seja qual for o tamanho. Na Baixa citadina, é nas zonas mais degradadas que as bandeiras mais se destacam, nalguns casos atravessando as estreitas ruas de lado a lado, como na Rua Direita" (Público, 11 de Junho de 2004).



Em Lisboa, eu também constato o mesmo fenómeno e, curiosamente, é nos bairros populares e nos bairros de habitação social que se desfraldam mais bandeiras portuguesas, das tais made in China, com os símbolos lusitanos aldrabados: os famigerados pagodes budistas em vez dos nossos garbosos castelos conquistados à moirama!



5. A esta hora da noite, ou melhor da madrugada, deixem-me dizer que o meu herói, provisório, efémero, é o Ricardo... Ou porque não os dois Ricardos ? E quem diz os dois diz os vinte e três mais o resto da orquestra... Esta npoite chamo-me Ricardo. Confesso que não vi o jogo Portugal-Inglaterra, apenas os últimos, dramáticos minutos, impróprios para cardíacos...

 

Em boa verdade sou patriota mas não sou masoquista; aliás, pela Pátria já dei o meu quinhão de sangue, suor e lágrimas...



O que me tocou, o que me sensibilizou profundamente, o que emocionou mesmo foi a sua (dele, Ricardo) atitude de autoconfiança, pondo a cabeça no cepo ao oferecer-se, ele próprio, para marcar o último e decisivo penalty, depois de ter acabado de fazer a grande defesa da noite...



Eu acho que ele quis matar de vez o fantasma do Vitor Baía, como diria o Prof. Carlos Amaral Dias (e dirão os jornais do dia seguinte). Independentemente disso, eu passei a ter um enorme respeito por este mouro do Montijo. A sua postura, a sua determinação, a sua coragem e a sua heterodoxia são (bons) exemplos que extravasam as quatro linhas bem delimitadas de um campo de futebol...



Eu que não vi o jogo de futebol Portugal-Inglaterra, e que de resto não passou de um simples jogo de futebol entre onze portugueses e onze ingleses... Ou terão sido muitos mais ?



O que vale é que portugueses, espanhóis e ingleses são fracos em história, senão já teriam trazido, para o relvado dos estádios novinhos em folha, as (e)ternas questões por resolver, ligadas à nossa história comum: por ex., a valorosa padeira de Aljubarrota teria mesmo seis dedos em cada mão ? E como que é que, mesmo assim, com seis dedos, ela foi capaz de matar, só à conta dela, sete castelhanos?



6.  Não há dúvida de que o nacionalismo é uma ideologia eficiente e eficaz.  O futebol é hoje o-pão-e-o-circo da pós-modernidade. A(s) direita(s) europeia(s) sempre o souberam explorar. Começaram por fazer dele um fenómeno interclassista, logo acima de todas as diferenças que todos os dias nos separam...



Não era por acaso que denunciávamos, antes e depois do 25 de Abril de 1974, a ditadura dos três F (Fátima, Fado e Futebol).



O Futebol é hoje a continuação da guerra por outros meios. Em plena euroforia, é bom pôr (re)pensar o fenómeno da futebolização da sociedade portuguesa actual... Não vale a pena dar-lhe muita importância, mas também não é aconselhável  subestimá-la. Socio(b)logo dixit!



Portugas que merecem as nossas palmas - X: Ricardo, herói (nacional) por uma noite

1. Eu que sei o que é que o meu ilustre colega de Coimbra, muitíssimo mais ilustre do que eu, o sociólogo Carlos Fortuna, pensa da onda de nacionalismo que por aí vai, na sequência do Euro 2004: é "barato, imediatista e pouco consistente", disse ele aos jornais.

Não me admiraria nada que logo a seguir um outro ilustre coimbrão, vedeta da rádio, da televisão e da psiquiatria, o Prof. Carlos Amaral Dias, viesse dizer precisamente o contrário: que o futebol funciona hoje, de maneira eficaz e eficiente, como o tal caldo de cultura onde se misturam e produzem todos os elementos identitários de um povo, de uma nação, de um país. Em Portugal, em Inglaterra e por aí fora.

Eu sei que ele, Carlos Fortuna, tem toda a razão sociológica deste mundo, mas nem por isso ele deixa de dar a impressão de ser um chato de um sociólogo. E a pior coisa que nos pode acontecer, a nós, sociólogos, é sermos uns chatos de uns sociólogos.

Os sociólogos são chatos, não só por causa da (i) sua lingauagem de pau (langue du bois, em francês), mas também por que (ii) costumam dizer coisas que ninguém gosta de ouvir, a começar pelas elites do poder: que o rei vai nu, por exemplo... Além disso, são chatos por que (iii) vêm estragar a festa do Zé Povinho.

Em Coimbra, no Porto ou em Lisboa, que são as três praças fortes do pensamento sociológico, há sociólogos chatos. Lucidíssimos mas chatos. Sejamos pluralistas: e porque não também Braga ? ou Évora ? Não quero, com isto, hierarquizar os pólos da sociologia portuguesa que, de resto, está bem e recomenda-se (E o Prof.  Carlos Fortuna é um dos nomes que honra a sociologia portuguesa, diga-se a talhe de foice).

2. Eu subscrevo inteiramente o que o senhor professor de Coimbra escreveu a este propósito: "Este nacionalismo [futebolístico] é pouco". Mais: "a bandeira custa um euro". Pior ainda: a bandeira é made in China. Trágico:  foi feita numa daquelas fábricas de vão escada, em que o trabalho é sinónimo de sangue, suor e lágrimas.

As tristemente famosas sweatshops dos chinocas foram há dias publicamente denunciadas pelos nossos grandes industriais do têxtil, como exemplos de dumping social. Nunca os vi, entretanto, preocupados com as sweat shops dos portugas, em Vale do Ave e outros paraísos do empreendedorismo lusitano, com a melhoria das condições de trabalho dos operários portugueses, com a protecção da saúde e da segurança do trabalho, com a sua qualidade de vida no trabalho, etc.
 
Como eu costumo dizer, se as nossas fábricas e outros locais de trabalho fossem ao menos "estábulos-modelos", os nossos operários e demais trabalhadores poderiam ser equiparados à melhor aristocracia dos porcos, dos perus, dos frangos ou das vacas...

A verdade sociológica mais profunda é que este é um "nacionalismo barato", afirmou o ex-presidente da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), em declarações à agência Lusa (Público, 11 de Junho de 2004). Eu acrescentaria: duplamente barato!

O meu ilustre colega sustenta que, "face à consciência nacional de um défice de resultados positivos (do país), os portugueses querem sucesso rápido, breve e imediato, e o futebol resolve-se em 90 minutos".

Ora, desse ponto de vista, o futebol "é fantástico, porque é a plena consciência nacional do fracasso", considerando que "há muita pouca coisa com que os portugueses se possam entusiasmar" (espero que o jornalista não tenha deturpado o pensamento do sociólogo).

Na opinião de Carlos Fortuna, existe em Portugal um "défice de nacionalismo e de auto-estima", e o país precisa de um nacionalismo "não tão imediatista e mais consistente do ponto de vista político".

Em suma, este é um recado, sábio, para o portuga de ejaculação precoce que espera o paraíso ao fim de 90 minutos de provação no inferno (há vários infernos: o dos dragões, o da luz, o de alvalade...).

3. Eu não gosto de fazer sociologia espontânea nem de me pôr em bicos de pés para aparecer em título de caixa alta. Quando muito, lá vou praticando a minha periférica e efémera socio(b)logia...

Mas se os doutos professores coimbrãos me permitem uma opinião de leigo ou, quando muito, de socio(b)logo, eu ficaria contente, se fosse psiquiatra ou até ministro da saúde, por os portugas deixarem de pensar, mesmo que por uns escassos momentos, no dramático fim de mês que, para cada vez mais portugas, tende a ser (ou parecer ser) pior que o fim o mundo...
 
O que de resto é compreensível, diga-se de passagem: (i) do fim do mundo nunca ninguém voltou para dar o dramático, pungente e irrepetível testemunho; (ii) e da terrível provação de tesos do dia 15 até ao fim do mês,  todos (ou quase todos) os portugas podem falar de cátedra...

Eu sei que o futebol não resolve este problema, nem nenhum outro problema dos nossos muitos problemas colectivos (estruturais, económicos, culturais, mentais...). Mas, que diabo!, faz bem a nossa auto-estima. Nem que seja por uma noite ou por umas horas!

Cibercaríssimo Carlos, deixe o portuga (i) sonhar, (ii) alienar-se, (iii) embebedar-se, por uma uma noite... Deixe o portuga tuga (iv) pensar que é o maior do mundo só por que às veze até é capaz de enfiar a bola na baliza... A ressaca do dia seguinte é terrível e aí você pode aplicar a sua pesada, pesadíssima, lucidez de sociólogo, o rigoroso método do Durkheim, do Weber ou do Bourdieu...

4. Leio nos jornais que, em Coimbra, a procura das bandeiras portuguesas tem sido tal que se encontra praticamente esgotada, nomeadamente nos quiosques:

"Esgotaram há três, quatro dias", disse à Lusa José Maria Saraiva, da Tabacaria S. Cruz, uma das mais centrais na cidade.A varanda, a janela, a porta, o fio da roupa, o chapéu-de-sol que abriga o engraxador de sapatos, quase tudo serve para expor a bandeira nacional, na cidade de Coimbra, seja qual for o tamanho. Na Baixa citadina, é nas zonas mais degradadas que as bandeiras mais se destacam, nalguns casos atravessando as estreitas ruas de lado a lado, como na Rua Direita" (Público, 11 de Junho de 2004).

Em Lisboa, eu também constato o mesmo fenómeno e, curiosamente, é nos bairros populares e nos bairros de habitação social que se desfraldam mais bandeiras portuguesas, das tais made in China, com os símbolos lusitanos aldrabados: os famigerados pagodes budistas em vez dos nossos garbosos castelos conquistados à moirama!

5. A esta hora da noite, ou melhor da madrugada, deixem-me dizer que o meu herói, provisório, efémero, é o Ricardo... Ou porque não os dois Ricardos ? E quem diz os dois diz os vinte e três mais o resto da orquestra... Esta npoite chamo-me Ricardo. Confesso que não vi o jogo Portugal-Inglaterra, apenas os últimos, dramáticos minutos, impróprios para cardíacos...
 
Em boa verdade sou patriota mas não sou masoquista; aliás, pela Pátria já dei o meu quinhão de sangue, suor e lágrimas...

O que me tocou, o que me sensibilizou profundamente, o que emocionou mesmo foi a sua (dele, Ricardo) atitude de autoconfiança, pondo a cabeça no cepo ao oferecer-se, ele próprio, para marcar o último e decisivo penalty, depois de ter acabado de fazer a grande defesa da noite...

Eu acho que ele quis matar de vez o fantasma do Vitor Baía, como diria o Prof. Carlos Amaral Dias (e dirão os jornais do dia seguinte). Independentemente disso, eu passei a ter um enorme respeito por este mouro do Montijo. A sua postura, a sua determinação, a sua coragem e a sua heterodoxia são (bons) exemplos que extravasam as quatro linhas bem delimitadas de um campo de futebol...

Eu que não vi o jogo de futebol Portugal-Inglaterra, e que de resto não passou de um simples jogo de futebol entre onze portugueses e onze ingleses... Ou terão sido muitos mais ?

O que vale é que portugueses, espanhóis e ingleses são fracos em história, senão já teriam trazido, para o relvado dos estádios novinhos em folha, as (e)ternas questões por resolver, ligadas à nossa história comum: por ex., a valorosa padeira de Aljubarrota teria mesmo seis dedos em cada mão ? E como que é que, mesmo assim, com seis dedos, ela foi capaz de matar, só à conta dela, sete castelhanos?

6.  Não há dúvida de que o nacionalismo é uma ideologia eficiente e eficaz.  O futebol é hoje o-pão-e-o-circo da pós-modernidade. A(s) direita(s) europeia(s) sempre o souberam explorar. Começaram por fazer dele um fenómeno interclassista, logo acima de todas as diferenças que todos os dias nos separam...

Não era por acaso que denunciávamos, antes e depois do 25 de Abril de 1974, a ditadura dos três F (Fátima, Fado e Futebol).

O Futebol é hoje a continuação da guerra por outros meios. Em plena euroforia, é bom pôr (re)pensar o fenómeno da futebolização da sociedade portuguesa actual... Não vale a pena dar-lhe muita importância, mas também não é aconselhável  subestimá-la. Socio(b)logo dixit!

24 junho 2004

Portugas que merecem as nossas palmas - IX: João Lobo Antunes e a ciência (a)moral

A ciência é amoral ? Puro engano, isso não existe. A amoralidade em ciência. Não há tecnologia nem ciência(s) puras. Temos que fazer escolhas, quase sempre difíceis e por vezes dilacerantes. Agora o que não podemos é proibir o conhecimento. O acesso à informação e ao conhecimento é, hoje, um dado civilizacional, um valor democrático.



Corremos o risco de abrir a caixa de Pandora ? Mas a aventura humana não é outra coisa senão essa oportunidade e esse desafio.



Perguntam: mas as novas tecnologias (por exemplo, as da saúde) são igualizadoras, garantem a igualdade de oportunidades, ou não passam de “brinquedos para os ricos” ? É como a história do aborto: não se pode fazer em Portugal ? Dá-se uma salto a Badajoz, ali mesmo ao aldo, onde há clínicas abortivas para quem pode pagar...



Foram estas e outras perguntas (muito mnais do que as respostas) que constituíram a excelente, estimulante e amena cavaqueira que o Prof. João Lobo Antunes manteve, no passado dia 22, com dúzia e meia de privilegiad@s no Salão Nobre da Escola Nacional de Saúde Pública, das 17 às 18 horas, a propósito das novas tecnologias da saúde, da prática clínica e da administração de cuidados.



Nada como juntar o papel de médico que manipula uma alta tecnologia (a neurocirurgia) com o do membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sem esquecer, o professor, o cidadão, o escritor, o humanista (no sentido renascentista do termo), o Prémio Pessoa 1996, etc.



Que implicações éticas têm as novas tecnologias ? Muitas, a começar pelos custos e benefícios. Veja-se o discurso dos políticos sobre a investigação em células estaminais humanas: os mais conservadores (v.g., Bush, Agosto de 2001) têm acentuado (i) o princípio dos riscos morais; e (ii) a negação do princípio (erradamente atribuído a Maquiavel) de que os fins (e sobretudo os mais nobres...) justificam os meios. E que fins mais nobres do que o de prevenir e curar a doença (v.g., Alzeimher) ou até de melhorar a espécie humana ?!



O drama é que a ciência não é mais pura... A ciência tornou-se pura com o iluminismo. Mas ela começou por ser pragmática (por exemplo, na Idade Média, nos conventos). Hoje tende a desaparecer o gap entre a ciência académica (individual, teórica, desinteressada, pura...) e a ciência industrial (grupal, prática, pragmática, produzindo valor acrescentado...). Há uma tremenda pressão para que a ciência se transforma em tecnologia, essa filha sexy da ciência...



O que temos hoje é a apploid science: (i) colectiva, em rede; (ii) aplicável, logo rentável; (iii) propensa ao conflito (há sempre conflito de interesses; e, por fim, com (iv) consequências éticas... Veja-se o que se passou cokm o grupo de cientistas que esteve na origem na construção da bomba atómica (J. Robert Oppenhieimer, Einstein, Leo Szilard...).



As novas tecnologias começam por exercer em nós uma enorme surpresa e encanto (i); há depois uma segunda fase, que é de refluxo, de receios pelos riscos (“a acaixa de Pandora”); e, +por fim, (iii) a preessão do Estado e da socieade civcil para a regulamantação.



No campo da a saúde, pode-se falar há muito de um complexo médico-industrial, com particulares interesses nos tipos de tecnologia: (i) as de suporte à vida; (ii) as diagnósticas; e, por fim, (iii) as cirúrgicas.



(...)

Portugas que merecem as nossas palmas - IX: João Lobo Antunes e a ciência (a)moral

A ciência é amoral ? Puro engano, isso não existe. A amoralidade em ciência. Não há tecnologia nem ciência(s) puras. Temos que fazer escolhas, quase sempre difíceis e por vezes dilacerantes. Agora o que não podemos é proibir o conhecimento. O acesso à informação e ao conhecimento é, hoje, um dado civilizacional, um valor democrático.

Corremos o risco de abrir a caixa de Pandora ? Mas a aventura humana não é outra coisa senão essa oportunidade e esse desafio.

Perguntam: mas as novas tecnologias (por exemplo, as da saúde) são igualizadoras, garantem a igualdade de oportunidades, ou não passam de “brinquedos para os ricos” ? É como a história do aborto: não se pode fazer em Portugal ? Dá-se uma salto a Badajoz, ali mesmo ao aldo, onde há clínicas abortivas para quem pode pagar...

Foram estas e outras perguntas (muito mnais do que as respostas) que constituíram a excelente, estimulante e amena cavaqueira que o Prof. João Lobo Antunes manteve, no passado dia 22, com dúzia e meia de privilegiad@s no Salão Nobre da Escola Nacional de Saúde Pública, das 17 às 18 horas, a propósito das novas tecnologias da saúde, da prática clínica e da administração de cuidados.

Nada como juntar o papel de médico que manipula uma alta tecnologia (a neurocirurgia) com o do membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sem esquecer, o professor, o cidadão, o escritor, o humanista (no sentido renascentista do termo), o Prémio Pessoa 1996, etc.

Que implicações éticas têm as novas tecnologias ? Muitas, a começar pelos custos e benefícios. Veja-se o discurso dos políticos sobre a investigação em células estaminais humanas: os mais conservadores (v.g., Bush, Agosto de 2001) têm acentuado (i) o princípio dos riscos morais; e (ii) a negação do princípio (erradamente atribuído a Maquiavel) de que os fins (e sobretudo os mais nobres...) justificam os meios. E que fins mais nobres do que o de prevenir e curar a doença (v.g., Alzeimher) ou até de melhorar a espécie humana ?!

O drama é que a ciência não é mais pura... A ciência tornou-se pura com o iluminismo. Mas ela começou por ser pragmática (por exemplo, na Idade Média, nos conventos). Hoje tende a desaparecer o gap entre a ciência académica (individual, teórica, desinteressada, pura...) e a ciência industrial (grupal, prática, pragmática, produzindo valor acrescentado...). Há uma tremenda pressão para que a ciência se transforma em tecnologia, essa filha sexy da ciência...

O que temos hoje é a apploid science: (i) colectiva, em rede; (ii) aplicável, logo rentável; (iii) propensa ao conflito (há sempre conflito de interesses; e, por fim, com (iv) consequências éticas... Veja-se o que se passou cokm o grupo de cientistas que esteve na origem na construção da bomba atómica (J. Robert Oppenhieimer, Einstein, Leo Szilard...).

As novas tecnologias começam por exercer em nós uma enorme surpresa e encanto (i); há depois uma segunda fase, que é de refluxo, de receios pelos riscos (“a acaixa de Pandora”); e, +por fim, (iii) a preessão do Estado e da socieade civcil para a regulamantação.

No campo da a saúde, pode-se falar há muito de um complexo médico-industrial, com particulares interesses nos tipos de tecnologia: (i) as de suporte à vida; (ii) as diagnósticas; e, por fim, (iii) as cirúrgicas.

(...)

20 junho 2004

Blogantologia(s) - XIV: Paimogo da minha infância I

Não preciso de ser geólogo

Para te amar,

Ó Praia de Paimogo

Da minha infância.



Nem de ser paleontólogo

Para seguir as peugadas

Da tua errância

De dinossauro

do Jurássico Superior.



Nem muito menos biólogo ou sociólogo

Para te conhecer aí onde

Se alimenta o recolector-caçador

E o polvo, o povo, se esconde

Nas marés vivas de lua cheia.



Procurei abrigo na tua enseada,

Domei as ondas e o vento,

Esculpi a esfinge que guarda

A porta do teu templo,

Andei na pesca ao candeio,

Contrabandeei, fui almocreve,

Maçarico, marinheiro, calafate,

Pescador de lagosta, camarada,

Embarcadiço, capitão do norte,

Poeta, pirata e frade,

Fenício, celta, romano e moçárabe,

Português do mundo em cada esquina.



Armei navios, enriqueci, trafiquei,

Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,

Adubei as minha terras com o teu limo,

Fiz o meu ninho de ave de rapina

No alto das tuas falésias,

Lavrei o mar, semeei a morte,

E os meus mortos enterrei

Nas tuas areias.



Vigiei o mar, o céu e a terra

Do alto setecentista do teu forte;

Tive visões, vi monstros e sereias,

Fugi das garras dos temíveis terópodes,

Extingui vulcões, sofri horrores,

Conheci a paz e a guerra,

Estive cativo do mouro,

Fui devorado por gasterópodes,

Choquei os teus ovos de dinossauro,

Andei à deriva dos continentes,

Mas a verdade é que,

Cobiçada por muitas gentes,

Nunca nenhuma armada invencível te venceu,

Ó Praia de Paimogo da minha infância.

Se te perdeste, foi só por amores!



Quando eu era criança,

Quando eu tive a sorte de ser criança,

As sardinhas voltavam sempre

Em frágeis cardumes de prata e luar

À praia onde haviam nascido.



Quando eu era menino e moço,

Havia uma princesa moura, encantada,

Numa das tuas grutas submarinas;

O corpo coberto de lapas e algas agar-agar,

Era fonte de água pura, doce e quente,

Donde bebiam os ofegantes cavalos alados

Com as suas enormes narinas.

E o vento, nas velas dos barcos e dos moinhos,

Falava-me da tragédia antiga, mas ainda viva,

Da filha do teu capitão

Que se havia matado do alto da arriba,

Dizem que por amor e solidão.



No antigo reino mouro

e depois franco da Lourinhã,

Também os búzios me diziam

Que à noite as luzinhas,

Ao sul das Ilhas Berlengas,

Eram as alminhas

Dos que morriam

Sem sepultura cristã.



Hoje não acredito mais nessas lendas:

Afinal essas luzes são apenas as das traineiras,

Ao largo do Mar da Cerca,

Atrás dos cardumes de sardinhas.







Fonte: © Atelier Hannover 2000(1999-2000)





Post scriptum



Em 1993, foi descoberto em Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ninho de ovos de dinossauro do mundo, e mais específicamente de dinossauros terópodes (carnívoros bípedes).



Segundo ojovem paleontólogo e doutorando Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. "Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)". Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, "descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo. Essa ocorrência permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico".







1º Prémio do II Concurso Internacional de Ilustração de Dinossauros: Eustreptospondylus (pormenor) - Autor: Vladimir Bondar (Ucrânia)



© Vladimir Bondar e GEAL-Museu da Lourinhã (2002).



Divulgue o Museu da Lourinhã e sobretudo visite-o: é a melhor exposição permanente do País na área da paleontologia dos dinossauros.



Blogantologia(s) - XIV: Paimogo da minha infância I

Não preciso de ser geólogo
Para te amar,
Ó Praia de Paimogo
Da minha infância.

Nem de ser paleontólogo
Para seguir as peugadas
Da tua errância
De dinossauro
do Jurássico Superior.

Nem muito menos biólogo ou sociólogo
Para te conhecer aí onde
Se alimenta o recolector-caçador
E o polvo, o povo, se esconde
Nas marés vivas de lua cheia.

Procurei abrigo na tua enseada,
Domei as ondas e o vento,
Esculpi a esfinge que guarda
A porta do teu templo,
Andei na pesca ao candeio,
Contrabandeei, fui almocreve,
Maçarico, marinheiro, calafate,
Pescador de lagosta, camarada,
Embarcadiço, capitão do norte,
Poeta, pirata e frade,
Fenício, celta, romano e moçárabe,
Português do mundo em cada esquina.

Armei navios, enriqueci, trafiquei,
Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,
Adubei as minha terras com o teu limo,
Fiz o meu ninho de ave de rapina
No alto das tuas falésias,
Lavrei o mar, semeei a morte,
E os meus mortos enterrei
Nas tuas areias.

Vigiei o mar, o céu e a terra
Do alto setecentista do teu forte;
Tive visões, vi monstros e sereias,
Fugi das garras dos temíveis terópodes,
Extingui vulcões, sofri horrores,
Conheci a paz e a guerra,
Estive cativo do mouro,
Fui devorado por gasterópodes,
Choquei os teus ovos de dinossauro,
Andei à deriva dos continentes,
Mas a verdade é que,
Cobiçada por muitas gentes,
Nunca nenhuma armada invencível te venceu,
Ó Praia de Paimogo da minha infância.
Se te perdeste, foi só por amores!

Quando eu era criança,
Quando eu tive a sorte de ser criança,
As sardinhas voltavam sempre
Em frágeis cardumes de prata e luar
À praia onde haviam nascido.

Quando eu era menino e moço,
Havia uma princesa moura, encantada,
Numa das tuas grutas submarinas;
O corpo coberto de lapas e algas agar-agar,
Era fonte de água pura, doce e quente,
Donde bebiam os ofegantes cavalos alados
Com as suas enormes narinas.
E o vento, nas velas dos barcos e dos moinhos,
Falava-me da tragédia antiga, mas ainda viva,
Da filha do teu capitão
Que se havia matado do alto da arriba,
Dizem que por amor e solidão.

No antigo reino mouro
e depois franco da Lourinhã,
Também os búzios me diziam
Que à noite as luzinhas,
Ao sul das Ilhas Berlengas,
Eram as alminhas
Dos que morriam
Sem sepultura cristã.

Hoje não acredito mais nessas lendas:
Afinal essas luzes são apenas as das traineiras,
Ao largo do Mar da Cerca,
Atrás dos cardumes de sardinhas.



Fonte: © Atelier Hannover 2000(1999-2000)


Post scriptum

Em 1993, foi descoberto em Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ninho de ovos de dinossauro do mundo, e mais específicamente de dinossauros terópodes (carnívoros bípedes).

Segundo ojovem paleontólogo e doutorando Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. "Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)". Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, "descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo. Essa ocorrência permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico".



1º Prémio do II Concurso Internacional de Ilustração de Dinossauros: Eustreptospondylus (pormenor) - Autor: Vladimir Bondar (Ucrânia)

© Vladimir Bondar e GEAL-Museu da Lourinhã (2002).

Divulgue o Museu da Lourinhã e sobretudo visite-o: é a melhor exposição permanente do País na área da paleontologia dos dinossauros.