12 agosto 2004

Blogantologia(s) – XVII: Paimogo da minha infância III

Nova versão em relação à de 20.06.04. O blogador, em férias, pode ser visto a fazer o seu jogging matinal, na baixa-mar, entre a Praia da Areia Branca e a Praia do Paimogo. Que, diga-se baixinho, é um dos mais belos recantos do litoral português. Oxalá os deuses e sobretudo os homens não sejam dominados pela súbita febre do cimento armado que tem destruído outros recantos belíssimos, selvagens, da nossa costa. Vejo, no entanto, com preocupação as pontas dos guindastes a avançarem da Praia da Areia Branca para norte...





Não preciso de ser geólogo

Para te amar,

Ó Praia de Paimogo

Da minha infância.



Nem de ser paleontólogo

Para desenhar na areia

As peugadas da tua errância

De dinossauro do Jurássico Superior.



Nem muito menos biólogo ou sociólogo

Para te conhecer aí onde

Se alimenta o recolector-caçador

E o polvo, o povo, se esconde

Nas marés vivas de lua cheia.



Fugi de terramotos e tempestades,

Procurei abrigo na tua enseada,

Domei as ondas e o vento,

Desfiz mitos, adorei divindades,

Esculpi a esfinge alada

Que guarda a porta do teu templo.



Andei na pesca ao candeio,

Fui pescador de lagosta,

Camponês, jornaleiro, camarada,

Andarilho de costa a costa,

Negociante de peixe, almocreve,

Apanhador de algas, caçador submarino,

Amigo do fado e da boémia,

Poeta, pirata e frade,

Mulher e fêmea,

Viúva de vivo e de morto,

Zé-Ninguém, cidadão clandestino.



Vim da Bretanha em barcos a vapor,

Fui avieiro nos meses longos de verão,

Fenício, cartaginês, romano e moçárabe,

Português do mundo em cada porto.



Armei navios, enriqueci, trafiquei,

De escravos fui senhor

E dono de engenhos nos brasis.

Embarcadiço e capitão do norte,

Aventureiro e explorador colonial,

Bandeirante, garimpeiro,

Prostituta e proxeneta,

E até de príncipes fui conselheiro.



Carreguei vinho nos barris

Da nossa Nau Catrineta,

Para a corte russa, imperial;

Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,

Adubei as minhas terras

Com o limo do mar dos sargaços,

Fiz o meu ninho de ave de rapina

No alto das tuas falésias,

Fui presa e predador,

Dos contrabandistas segui os passos,

Lavrei o mar, semeei a morte,

Sobrevivi a mil e uma guerras,

E os meus mortos enterrei

Nas tuas areias.



Vigiei o mar, o céu e a terra

Do alto setecentista do teu forte:

Tive visões, vi monstros e sereias,

Fugi das garras dos terópodes,

Escapei dos mandíbulas dos crocodilos,

Lutei contra muitas outras feras,

Fiz a paz e a guerra,

Da vida conheci todo os estilos,

Fui condenado às galeras

E quase devorado por gastrópodes,

Peguei de caras o minotauro,

Estive cativo do mouro

Nas longínquas mauritânias,

Choquei os teus ovos de dinossauro,

Construí castros, citânias,

Andei à deriva dos continentes,

Sobrevivi à fome e à peste,

Andei a monte, fugi a salto,

Lutei pela liberdade,

Pela lei e pela grei gritei bem alto,

De norte a sul, de leste a oeste,

E a pátria te defendi,

Contra todos os invasores.



A verdade, a verdade,

É que cobiçada por muitas gentes,

Desejada por muitos senhores,

Nunca nenhuma armada invencível te venceu,

Ó Praia de Paimogo da minha infância.

Se te perdeste,

Se alguma vez te perdeste,

Foi só por amores.



Quando eu era criança,

Quando eu tive a sorte de ser criança

Como diria o Fernando Pessoa,

As sardinhas voltavam sempre

Em frágeis cardumes de prata e luar

À praia onde haviam desovado.



Quando eu era menino e moço,

No tempo em que ainda partiam soldados

Para a Índia, para Goa,

Havia uma princesa, moura, encantada,

Num das tuas grutas submarinas;

O corpo coberto de ágar-ágar,

Era fonte de água pura, quente e doce,

Donde bebiam os ofegantes cavalos alados,

Com as suas enormes narinas.



E o vento, a nortada,

Nas velas dos barcos e dos moinhos,

Falavam-me da tragédia antiga,

Mas ainda viva,

Da filha do teu capitão

Que se havia matado do alto da arriba,

Dizem que por amor e solidão.



No antigo reino mouro

E depois franco e fero da Lourinhã,

Também os búzios me diziam

Que à noite as luzinhas,

A sul das Ilhas Berlengas,

Eram as alminhas

Dos que morriam

No mar, sem sepultura cristã.



Pobres náufragos,

Marinheiros, pescadores,

Poetas loucos, errantes, noctívagos,

Imigrantes clandestinos,

Corsários, contrabandistas, pecadores,

À deriva, sem um ui nem um ai,

Agarrados às tábuas do barco Deus é Pai.



Hoje não acredito mais

Nessas lendas das alminhas

Que eu ouvia aos ceguinhos das feiras,

Vendedores de letras de fado

E do Borda-d’Água:

Afinal essas luzinhas,

Lá longe e ali tão perto,

São apenas as traineiras

Ao largo do Mar do Serro,

Atrás dos cardumes de sardinhas.





Forte de Paimogo, visto do lado nascente.

Fotografia gentilmente cedida por © António Pena Luís (2004)





Notas explicativas:



1) O Forte de Paimogo, construído em 1674, construído durante a regência do príncipe D. Pedro, futuro rei D. Pedro II, “fazia parte de uma linha defensiva da costa portuguesa, que começava na Praça Forte da vila de Peniche e estendia até ao Forte de São Francisco de Xabregas, na cidade de Lisboa” (Cipriano, 2001.143). Embora classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto nº 41191, de 18 de Julho de 1955, encontra-se há muito em estado de ruína. Apraz-me saber que a Cãmara Municipal da Lourinhã tem um projecto para a sua recuperação.



2) O concelho da Lourinhã também tem a sua quota-parte na história trágico-marítima deste país. Cipriano (2001.261-262) refere a ocorrência, de 1968 a 2000, de seis naufrágios de barcos de pesca onde morreram três dezenas de filhos da terra, com especial destaque para as gentes de Ribamar (fora outros acidentes de trabalho mortais, cujo número se desconhece). Um desses naufrágios foi o do barco Deus é Pai, em 26 de Março de 1971, no Mar do Serro, ao largo do Cabo Carvoeiro. Os restantes foram os do Certa (15 de Maio de 1968), Altar de Deus (6 de Novembro de 1982), Arca de Deus (17 de Fevereiro de 1993), Amor de Filhos (25 de Julho de 1994) e Orca II (antigo Porto Dinheiro) (19 de Julho de 2000). Entre estes homens há parentes meus, da grande família Maçarico.



3) Em 1993, foi descoberto na zona de Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ninho de ovos de dinossauro do mundo. Segundo o jovem paleontólogo e doutorando Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. “Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)”. Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, “descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo". Essa ocorrência, conclui o jovem cientista lourinhanense, "permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico”.



4) A presença humana em Paimogo está documentada por vestígios arqueológicos, remontando pelo menos ao Calcolítico. A região da Lourinhã também foi habitada por povos como os iberos, os fenícios, os gregos, os túrdulos e os cartagineses. A passagem mais marcante foi, todavia, a dos romanos e, depois, a dos mouros. Na reconquista destas terras, D. Afonso Henriques foi ajudado por cavaleiros francos (isto é, oriundos da antiga Gália), entre eles D. Jordão, que irá ser o primeiro donatário da Lourinhã (Cipriano, 2001. 17-25).



Referência bibliográfica:



Cipriano, Rui Marques (2001) – Vamos falar da Lourinhã. Lourinhã: Câmara Municipal da Lourinhã.



Outras fontes:



Lusodino > Página pessoal de Octávio Mateus



GEAL - Museu da Lourinhã





Blogantologia(s) – XVII: Paimogo da minha infância III

Nova versão em relação à de 20.06.04. O blogador, em férias, pode ser visto a fazer o seu jogging matinal, na baixa-mar, entre a Praia da Areia Branca e a Praia do Paimogo. Que, diga-se baixinho, é um dos mais belos recantos do litoral português. Oxalá os deuses e sobretudo os homens não sejam dominados pela súbita febre do cimento armado que tem destruído outros recantos belíssimos, selvagens, da nossa costa. Vejo, no entanto, com preocupação as pontas dos guindastes a avançarem da Praia da Areia Branca para norte...


Não preciso de ser geólogo
Para te amar,
Ó Praia de Paimogo
Da minha infância.

Nem de ser paleontólogo
Para desenhar na areia
As peugadas da tua errância
De dinossauro do Jurássico Superior.

Nem muito menos biólogo ou sociólogo
Para te conhecer aí onde
Se alimenta o recolector-caçador
E o polvo, o povo, se esconde
Nas marés vivas de lua cheia.

Fugi de terramotos e tempestades,
Procurei abrigo na tua enseada,
Domei as ondas e o vento,
Desfiz mitos, adorei divindades,
Esculpi a esfinge alada
Que guarda a porta do teu templo.

Andei na pesca ao candeio,
Fui pescador de lagosta,
Camponês, jornaleiro, camarada,
Andarilho de costa a costa,
Negociante de peixe, almocreve,
Apanhador de algas, caçador submarino,
Amigo do fado e da boémia,
Poeta, pirata e frade,
Mulher e fêmea,
Viúva de vivo e de morto,
Zé-Ninguém, cidadão clandestino.

Vim da Bretanha em barcos a vapor,
Fui avieiro nos meses longos de verão,
Fenício, cartaginês, romano e moçárabe,
Português do mundo em cada porto.

Armei navios, enriqueci, trafiquei,
De escravos fui senhor
E dono de engenhos nos brasis.
Embarcadiço e capitão do norte,
Aventureiro e explorador colonial,
Bandeirante, garimpeiro,
Prostituta e proxeneta,
E até de príncipes fui conselheiro.

Carreguei vinho nos barris
Da nossa Nau Catrineta,
Para a corte russa, imperial;
Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,
Adubei as minhas terras
Com o limo do mar dos sargaços,
Fiz o meu ninho de ave de rapina
No alto das tuas falésias,
Fui presa e predador,
Dos contrabandistas segui os passos,
Lavrei o mar, semeei a morte,
Sobrevivi a mil e uma guerras,
E os meus mortos enterrei
Nas tuas areias.

Vigiei o mar, o céu e a terra
Do alto setecentista do teu forte:
Tive visões, vi monstros e sereias,
Fugi das garras dos terópodes,
Escapei dos mandíbulas dos crocodilos,
Lutei contra muitas outras feras,
Fiz a paz e a guerra,
Da vida conheci todo os estilos,
Fui condenado às galeras
E quase devorado por gastrópodes,
Peguei de caras o minotauro,
Estive cativo do mouro
Nas longínquas mauritânias,
Choquei os teus ovos de dinossauro,
Construí castros, citânias,
Andei à deriva dos continentes,
Sobrevivi à fome e à peste,
Andei a monte, fugi a salto,
Lutei pela liberdade,
Pela lei e pela grei gritei bem alto,
De norte a sul, de leste a oeste,
E a pátria te defendi,
Contra todos os invasores.

A verdade, a verdade,
É que cobiçada por muitas gentes,
Desejada por muitos senhores,
Nunca nenhuma armada invencível te venceu,
Ó Praia de Paimogo da minha infância.
Se te perdeste,
Se alguma vez te perdeste,
Foi só por amores.

Quando eu era criança,
Quando eu tive a sorte de ser criança
Como diria o Fernando Pessoa,
As sardinhas voltavam sempre
Em frágeis cardumes de prata e luar
À praia onde haviam desovado.

Quando eu era menino e moço,
No tempo em que ainda partiam soldados
Para a Índia, para Goa,
Havia uma princesa, moura, encantada,
Num das tuas grutas submarinas;
O corpo coberto de ágar-ágar,
Era fonte de água pura, quente e doce,
Donde bebiam os ofegantes cavalos alados,
Com as suas enormes narinas.

E o vento, a nortada,
Nas velas dos barcos e dos moinhos,
Falavam-me da tragédia antiga,
Mas ainda viva,
Da filha do teu capitão
Que se havia matado do alto da arriba,
Dizem que por amor e solidão.

No antigo reino mouro
E depois franco e fero da Lourinhã,
Também os búzios me diziam
Que à noite as luzinhas,
A sul das Ilhas Berlengas,
Eram as alminhas
Dos que morriam
No mar, sem sepultura cristã.

Pobres náufragos,
Marinheiros, pescadores,
Poetas loucos, errantes, noctívagos,
Imigrantes clandestinos,
Corsários, contrabandistas, pecadores,
À deriva, sem um ui nem um ai,
Agarrados às tábuas do barco Deus é Pai.

Hoje não acredito mais
Nessas lendas das alminhas
Que eu ouvia aos ceguinhos das feiras,
Vendedores de letras de fado
E do Borda-d’Água:
Afinal essas luzinhas,
Lá longe e ali tão perto,
São apenas as traineiras
Ao largo do Mar do Serro,
Atrás dos cardumes de sardinhas.


Forte de Paimogo, visto do lado nascente.
Fotografia gentilmente cedida por © António Pena Luís (2004)


Notas explicativas:

1) O Forte de Paimogo, construído em 1674, construído durante a regência do príncipe D. Pedro, futuro rei D. Pedro II, “fazia parte de uma linha defensiva da costa portuguesa, que começava na Praça Forte da vila de Peniche e estendia até ao Forte de São Francisco de Xabregas, na cidade de Lisboa” (Cipriano, 2001.143). Embora classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto nº 41191, de 18 de Julho de 1955, encontra-se há muito em estado de ruína. Apraz-me saber que a Cãmara Municipal da Lourinhã tem um projecto para a sua recuperação.

2) O concelho da Lourinhã também tem a sua quota-parte na história trágico-marítima deste país. Cipriano (2001.261-262) refere a ocorrência, de 1968 a 2000, de seis naufrágios de barcos de pesca onde morreram três dezenas de filhos da terra, com especial destaque para as gentes de Ribamar (fora outros acidentes de trabalho mortais, cujo número se desconhece). Um desses naufrágios foi o do barco Deus é Pai, em 26 de Março de 1971, no Mar do Serro, ao largo do Cabo Carvoeiro. Os restantes foram os do Certa (15 de Maio de 1968), Altar de Deus (6 de Novembro de 1982), Arca de Deus (17 de Fevereiro de 1993), Amor de Filhos (25 de Julho de 1994) e Orca II (antigo Porto Dinheiro) (19 de Julho de 2000). Entre estes homens há parentes meus, da grande família Maçarico.

3) Em 1993, foi descoberto na zona de Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ninho de ovos de dinossauro do mundo. Segundo o jovem paleontólogo e doutorando Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. “Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)”. Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, “descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo". Essa ocorrência, conclui o jovem cientista lourinhanense, "permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico”.

4) A presença humana em Paimogo está documentada por vestígios arqueológicos, remontando pelo menos ao Calcolítico. A região da Lourinhã também foi habitada por povos como os iberos, os fenícios, os gregos, os túrdulos e os cartagineses. A passagem mais marcante foi, todavia, a dos romanos e, depois, a dos mouros. Na reconquista destas terras, D. Afonso Henriques foi ajudado por cavaleiros francos (isto é, oriundos da antiga Gália), entre eles D. Jordão, que irá ser o primeiro donatário da Lourinhã (Cipriano, 2001. 17-25).

Referência bibliográfica:

Cipriano, Rui Marques (2001) – Vamos falar da Lourinhã. Lourinhã: Câmara Municipal da Lourinhã.

Outras fontes:

Lusodino > Página pessoal de Octávio Mateus

GEAL - Museu da Lourinhã