10 outubro 2005

Guiné 63/74 - CCXXXV: Uma estória comovente de camaradagem: o Carvalhido e o Freixinho

Um dos grupos de combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . Contuboel, 30 de Junho de 1969.

A guerra na Guiné criou fortes laços de solidariedade entre os combatentes, de um lado e de outro, independentemente da cor da pele, da origem social ou da etnia.

© António Levezinho (2005) (O Levezinho, aqui na foto, e pé, na terceira fila, juntamente com o Reis, era Fur Mil Atirador da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).


O Luís Carvalhido (ex-soldado de transmissões, radiotelegrafista, da CCS do BART 3873, Bambadinca, 1972/74) mandou-me, em tempos, uma mensagem por e-mail, com data de 21 de Abril de 2005, que me sensibilizou muito e que eu guardei (como, de resto, o faço em relação às mensagens de todos os tertulianos)... Infelizmente, não a cheguei a inserir no blogue em devido tempo, por mero lapso. Recupero-a hoje, com os meus pedidos de desculpa ao Luís e à nossa tertúlia. O Luís não precisa de ser adjectivado. Esta carta fala por ele, da sua grandeza de alma, e honra esta tertúlia de ex-combatentes da Guiné... O Luís Carv alhido tem uma frase, no fim, que se aplica, muito apropriadamente, a todos nós, ex-combatentes: "Perdoa-me, porque quando começo [a falar] nunca mais acabo".

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Companheiro:

Permite-me que te chame companheiro e amigo. Não me conheces, mas tal como muitos outros milhares de Portugueses falamos uma linguagem mais comum que a própria linguagem de Camões. Vivemos Africa e sentimos o frio das noites de medos disfarçados no fumo do tabaco e no paladar acre da cola.

Não sabes quem eu sou e isso não é muito importante, ou melhor deixa de ser importante se te disser que pisei os mesmos caminhos que tu, num triângulo que ia do portinho do Xime, até ao interior do Xitole. Decerto que não estarás admirado se te disser que te chamo companheiro porque também tu deves conhecer de cor e salteado a localização das tabancas de Bambadinca, onde eu passei cerca de vinte e sete meses.

Deixa-me voltar um pouco atrás, para te dizer como é que cheguei até ti. Para além de estar socialmente ligado à Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (isto é outra história, que dava outro livro, ou outros livros), sou amigo do António Castro, meu amigo e companheiro de armas na Guiné. Com ele mantenho contactos diários e através dele tomei conhecimento da tua existência e das muitas coisas que temos em comum.

Já agora, e por curiosidade, lembras-te dos furriéis brancos que vos foram substituir na CCAÇ 12? Eu conheci dois, o Domingos, de Leiria, conhecido pelo Lavrador (nunca percebi porquê) e o pequenino Alfredo Guerreiro, o homem que nunca tinha medo pois tomava uma carga etílica de tal ordem que os seus homens (deixa-me lembrar o Suleimane Baldé, esse fula que tantas vezes foi comigo à caça dos patos, lá para as bandas da baía do Enxalé) diziam que ele nunca aninhava debaixo de fogo (pudera, era tão pequenino). Estes dois, foram com certeza substituir-te, por isso deves ter-lhes dado o testemunho. Penso que não era do teu tempo, eles estiveram debaixo das ordens do capitão Bordalo, o das barbas grandes.

Como vês, calcorreámos os mesmos locais e sentimos da mesma maneira. Decerto e porque presumo que a vossa sede era Bambadinca, jogaste futebol no mesmo campo onde eu tantas vezes joguei. Provavelmente comeste mangas da mangueira que existia no posto do Governador Civil [administrador de posto, quer o Luís dizer]. Não vou falar em outras coisas que deves ter comido também, já que, dada a diferença de ocasião, eu devo ter feito outras escolhas.

Podia dizer-te muitas coisas, tais como: eu aprendi aquilo que era o macaréu, porque estive envolvido nele e na sua acção. Podia dizer-te que percebi aquilo que é a morte e o que é ficar estropiado.

Podia dizer-te que, tal como tu, também não dei um tiro, a não ser aqueles que dava aos patos e aos pombos verdes. Podia dizer-te que fui apelidado pelos meus oficiais do quadro (leia-se, xicos) de nharro, devido às minhas ligações de amizade com os nativos e com o pouco respeito que tinha pelas regras instituídas.

Podia dizer-te que no meu batalhão fui o único homem que esteve exilado, já que estive durante dois meses, sem mais nenhum branco, em Fá Mandinga (quantas saudades e como aprendi que a diferença da pele não tem qualquer valor, como aprendi que havia Africanos melhores que Europeus).

Podia dizer-te, meu caro, que tal como tu e milhares de muitos outros eu tenho a mente repleta de momentos e de histórias. Deixa-me dizer-te por exemplo: ou melhor deixa-me lembrar o Freixinho, um companheiro nosso que estava no Xitole e que veio para Bambadinca com paludismo em último grau.

Deixa que te diga que eu quando soube que havia um homem de Viana do Castelo na enfermaria em situação de precariedade, pedi autorização ao meu amigo Palhinhas e ao meu amigo Costa (analista e enfermeiro) - quantas vezes comi os frangos que vocês trocavam com os nativos!-, que me deixassem ser eu a tratá-lo.

Não era enfermeiro, mas tinha jeito, meu caro. Não era enfermeiro, mas tinha a capacidade do improviso a que éramos obrigados. Era preciso sobreviver e neste caso era preciso fazer sobreviver. Foi um luta de dois meses. Foi uma luta diária, metendo uma colher de leite condensado pelas goelas do Freixinho que nem os olhos abria.

Todos os dias lhe barbeava a cara, onde só se viam ossos sobrepondo-se àquilo que em tempos tinham sido as maçãs do rosto. Todos os dias o levantava (não custava muito porque ele nessa ocasião, não devia pesar mais de 48 quilos) para o limpar nas partes mais íntimas. Recuperei-o para a vida, meu amigo, e arranjei um amigo sério a quem mais tarde recorri em momentos difíceis para mim. Pena que o Freixinho se tenha partido desta [vida], muito cedo. Penso que tinha uma estrada muito curta, por isso se foi, ainda não teria quarenta anos.

Como vês, meu caro, podia dizer-te muitas coisas. E digo-te isto sobretudo porque nessa altura eu tinha um olhar de menino rebelde. Olhar de quem vê e não acredita. Olhar de quem sabe que tem que ser, mas que não fica calado. Olhar de menino ingénuo, mas muito selvagem. Olhar de quem brinca com coisas sérias, não se detendo com os medos comuns. Medo de morrer sim, medo de afrontar nunca.

Perdoa-me, porque quando começo nunca mais acabo. Africa é imensa, Africa é linda, Africa é inesquecível, a guerra colonial é uma nódoa que tem quer ser exorcizada.

Um abraço

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