26 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCCXV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (4): A acção psicossocial


Texto do João Varanda (ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636, Có 1969/71).


© João Varanda (2005)



A CCAÇ 2636 vivia Có nas suas 24 horas (1). A moral da companhia era sempre muito elevada, os sucessos já tinham surgido de forma muito significativa, a autoconfiança era enorme e tudo apontava para a continuação da boa estrela que nos estava a acompanhar. A nossa entrega era total, assim fomos compreendendo que muito havia a fazer encaixando-nos no sistema para que tudo se tornasse mais fácil. Para a Companhia era certo que em tempo de guerra teríamos de ser pau para toda a obra, tínhamos muito trabalho pela frente, por isso era extremamente necessário pôr mãos a toda aquela obra.

Colocada a tropa no terreno, as nossas acções na área foram sempre muito objectivas. O inimigo não se furtava a um contacto decisivo, naquele sector eram as nossas forças que comandavam e, como o inimigo não se colocava a descoberto, era por isso importante trabalhar na vertente social da campanha.

Vou respigar de memória alguns episódios para enaltecer o valor da campanha de apoio social, moral e médico que demos, à margem dos combates, às populações e aos nossos próprios homens.

Como Có era uma pequena e exígua tabanca, a dureza do conflito sobrepunha-se à sua riqueza e importância territorial, sustentando-se mesmo assim uma economia de mercado que permitia, sem dificuldade, assegurar a sobrevivência de uma população de poucas exigências. Seguindo a orientação de Spínola, conseguimos construir uma pequena urbe, abrindo caminhos, desenvolvendo a economia, melhorando o nível de vida das gentes locais.

Sobre a vertente social da campanha deixamos umas breves notas do conjunto de actividades encetadas a vários níveis de actuação:

1 – A tenda de campanha a CCAÇ 2636 possuía posto de socorros permanente para efeitos operacionais, constituindo uma mais valia não só para as tropas que ali viviam em ambiente de combate intenso, como também para as populações africanas, que usufruíam dos seus serviços assistenciais.

A equipa, tulelada pelo Furriel Miliciano do Serviço de Saúde António Silva Pratas e três Cabos enfermeiros, compenetrados da sua missão e sempre animados do melhor espírito de colaboração, desempenharam sempre tais funções com muito mérito e dedicação.

Era gratificante presenciar esse quadro diário. Muito cedo pela manhã, a população acampava junto ao Posto de Socorros em filas permanentes de mulheres, homens e crianças com a orientação do chefe de tabanca ou a um seu delegado que, por vezes, servia ao mesmo tempo de intérprete quando tal se justificasse. A maioria da população necessitava de acompanhamento clínico, devido a doenças endógenas de foro tropical, com base no paludismo. A prescrição era na maior parte das vezes com base em comprimidos ou injecção, para os africanos a aceitação da injecção era melhor, sem pruridos de qualquer natureza, coxas e rabos eram mostrados à espera de penetração da agulha. Toda a medicação era fornecida gratuitamente pelas Forças Armadas.

Ainda na vertente da saúde, diariamente se visitavam várias tabancas em busca de casos e de situações mais complexas ou mais raras que necessitavam de observação, diagnóstico ou tratamento. Casos que existiam, esconsos, envergonhados, escondidos na sombra de alguma miséria profunda. Nestes e em todos os outros que se impusesse, era providenciada imediata evacuação para Bissau, por via terreste, com escolta, ou por via aérea, conforme a urgência e a gravidade da situação encontrada.

Sobre os cuidados de saúde ministrados às populações, algumas outras reflexões compete aqui traçar. A primeira, para revelar a grande competência e, fundamentalmente, a extrema dedicação de todos os que connosco trabalharam, com parcos meios à sua disposição, com pessoal desprovido de formação, com largas de dezenas de consultas e tratamentos diários, com situações clínicas invulgares em muitos casos para abordarem. Eles foram, no seu ofício, heróis assumidos desta guerra particular.

A segunda nota é para descrever, em poucas palavras, situações vividas no terreno para provar a nossa ligação sentimental e efectiva aquela gente, tão profunda que nunca poderíamos regatear qualquer tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que o imperativo da missão, era a solidariedade verdadeira que nos movia. Dos muitos exemplos, escolho o daquela bajuda que iria ser mãe pela primeira vez.

Cerca das 3 horas da manhã, o chefe da tabanca contacta com o quartel transmitindo a necessidade de apoio médico à dita bajuda que, com o passar das horas, não dava sossego nem tranquilidade na tabanca. De imediato um camarada de serviço de segurança ao quartel foi ao abrigo subterrâneo à procura do primeiro que estivesse à mão para dar apoio e resolver a situação. Escusado será dizer a azáfama do pessoal dos serviços de saúde perante aquele caso que nunca se nos tinha deparado.

Após uma mini-reunião prestou-se-lhe os primeiros socorros e tomou-se a medida adequada, que era evacuação para Bissau para o Hospital Civil. Assim, e de imediato, a bajuda foi colocada no primeiro veículo à mão (por acaso o jipe cedido pelo Capitão Medina e Matos) e lá foi na companhia de um enfermeiro, um homem de transmissões e um atirador de metralhadora.

Estrada fora, lá foram os nossos camaradas, com as luzes do veículo nos máximos, num acto de desprezo pelo adversário, a todo o gás, direitos a João Landim, com o homem das transmissões a contactar com os fuzas para nos proporcionarem àquela hora a disponibilidade da jangada para fazermos a travessia rumo a Bissau. Cerca das 5 horas da manhã, esta malta dava entrada com a bajuda no hospital e, enquanto no guichet de atendimento entregávamos a papelada para tratamento de dados, ela seria mãe de um rapagão a quem foi dado o nome Mamadú Baldé.

2 – As gentes africanas de Có e subúrbios eram inconfundíveis: de grande estatura e carisma, eram irmãos de sangue e de luta pela mesma causa. Enaltecer os seus predicados seria esgotar toda uma panóplia de adjectivos. Por muito que o tentasse nesta singela crónica, não teria palavras para o fazer.

Naturalmente simpáticos, empenhados, compreensivos e sensíveis a todos os nossos argumentos, entre eles e nós havia uma empatia total, uma identificação absoluta em torno de todo o tipo de problemas desde os operacionais até aos da vivência da tabanca. Tudo se processava entre nós num perfeito sincronismo e entendimento, franco, despido de preconceitos.
Era muito fácil conviver com esta gente. Isto para dizer que, após todas as prestações de consultas de primeiros socorros, a tenda da enfermaria mais parecia um aviário de frangos e galinhas ofertados pelos pacientes, permitindo-nos depois fazer fabulosos pitéus nos momentos mais condicionados pela fome e pelo cansaço. Recusar a oferta de galinha ao africano era ofensa impensável.

3 – No percurso operacional tivemos um comportamento modelar, na área do bem-estar e do apoio social tudo também fizemos para colmatar muitos problemas locais, quer das NT, quer da população em geral. Para o bem-estar do pessoal, ao fim de pouco tempo, construímos um novo conjunto de cozinha, refeitório e cantina/bar para as praças.

Construímos ainda um espaçoso e seguro paiol subterrâneo para as centenas de granadas que jaziam praticamente a céu aberto, um sistema de filtragem de águas para beber e para banhos, uma oficina auto com fossa para lavagem e lubrificação de viaturas, com água corrente, para os nossos Unimog - para os grandes Furriel Marques e Teodoro Simões ( Nanza) nos proporcionarem transporte seguro -, um heliporto para evacuação de feridos e doentes para a capital Bissau, um sugestivo e elegante monumento alusivo à nossa passagem pela aquela terra, evocando os nossos mortos brancos e africanos. O qual, mais de trinta anos depois, ainda se mantém incólume e erecto conforme me relatou o Capitão do PAIGC Eduardo Sanhá que veio, após o final de guerra colonial, cursar Direito na Universidade de Coimbra.

Capinámos os principais troços das estradas envolventes ao destacamento de Có, reparámos aquelas mais necessitadas, construímos ou melhorámos pontes e pontões. Em relação à população africana, dadas as condicionantes da guerra envolvente que limitavam, por razões de segurança, as áreas agrícolas aproveitáveis, disponibilizávamos meios pessoais e viaturas para os enquadrar nas suas safras diárias, permitindo assim uma actividade agrícola e pecuária razoavelmente normal e produtiva.

Para salvaguarda do bem-estar e equilíbrio emocional do pessoal, junto ao improvisado estaleiro de apoio da brigada de engenharia, para a feitura da estrada Có – Pelundo construímos um campo para a prática do futebol, fenómeno universal e abrangente, que servia às mil maravilhas para descomprimir, sendo a sua utilização diária. Largas e longas tardes dedicámos ao jogo da bola.

Ampliamos a tabanca de Có com habitações construídas com uma espécie de argamassa feita de barro e capim seco com cobertura a colmo de palmeira ou chapa de zinco, made in U.S.A., à porta das quais se plantaram duas bananeiras, sinal vivo de África.

Todos estes tipos de apoio às populações autóctones - que em guerra clássica de guerrilha como era aquela é absolutamente fundamental e constante em todos os manuais que tratam o assunto -, eram feitos por nós não só com esse intuito. A nossa ligação sentimental a essa gente era tão profunda, que nunca poderíamos regatear qualquer tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que os imperativos da missão, era a solidariedade que nos movia.

(Continua)

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(1) vd posts anteriores do João Varanda:

15 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Cupilom...


16 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"...

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