13 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCLXV: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote)


Guiné > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole. Nessa época, o helicóptero ainda era um luxo...

© Virgínio Briote (2005)







Caro Luís,

A minha memória desses tempos foi passada a escrito com base em diários incompletos e muitas vezes interrompidos. Recorri a relatórios oficiais de operações feitas pelo grupo e a documentos escritos, depoimentos e diários de camaradas de outros grupos. Concluí-a dois meses depois de ter chegado e com a intenção de não voltar a pensar no assunto.

Depois dos episódios de Barro (*) fiquei convencido que a guerra na Guiné ia mesmo ter uma saída, aquele bravo povo ia tornar-se independente.

Mas fiz questão de respeitar o espírito que na altura vigorava entre nós, em Brá. A razão da nossa missão era fazer a guerra com eficácia, procurando trazer para o nosso lado a população que vivia entre os dois fogos.


Seguem mais 3 episódios.
Um abraço,
vb

7. DORNIER COM CHEIRO A COCÓ

Campo de aviação de Cuntima (**). O DO 27 aterrara há pouco numa nuvem de pó. Negros e brancos rodearam a avioneta, apalparam-lhe as asas, fizeram festas na fuselagem, o Magrinho a destacar-se com uma cerveja gelada na mão para o piloto.

Capitão novo, pele muito branca, a escorrer suor, mala do correio, grades de cerveja, caixas de uísque, medicamentos, tudo cá para fora.

Minutos depois, abraços e mais abraços, pista desimpedida, motor a trabalhar, portas fechadas. O Dornier a dar a volta devagar para o topo do campo, a roncar com mais força, na cabeça do Gil a imagem, não sabe como, do touro a raspar as patas, para os forcados. De repente aí vai o aviãosinho, a tremer todo, aos saltinhos, a ganhar velocidade, gás no máximo, campo de futebol fora, manobra apertada a evitar as balizas e as árvores. Não ouvira a salva de palmas mas vira da janela, não foi golo mas quase. E, pronto, adeus Cuntima, direcção de Farim.

Tinham pousado há minutos, a mesma cerimónia mas com mais gente e mais graduada. Um alvoroço em Farim, o Coronel, rodeado do seu estado-maior, a trocar impressões sobre as acções em Canjambari.

Então o alferes já vai para Bissau? Safa-se de boa.

Ouvira-o ainda falar sobre a resistência que a companhia de Jumbembem (**) estava a sofrer, combatia-se duramente na zona, até aí santuário do PAIGC. No caminho da fronteira para o Oio, uma autêntica auto-estrada, para todo o tipo de reabastecimentos. Canjambari morocunda, um km ou nem isso para o interior e Canjambari porto, junto ao rio.

As NT foram muito bem até Canjambari morocunda, para entrar em Canjambari porto (***) é que está mais difícil. Levantam a cabeça para lá, aí vai prémio de morteiro. Às 6 da matina, não precisam de corneteiro para nada, duas morteiradas em cima, o suficiente para abrirem os olhos, ponham-se a pé, tugas preguiçosos, toca a tentar mais uma vez. No final do dia também fazem questão de assinalar.

Esta merda para fim da comissão, estás a ver, o Medalha todo suado.

O avião estava com a carga no limite, o capelão, com um saco de pão fresco em cima das pernas, sentara-se à frente, ao lado do piloto. Atrás, encostado à janela um sargento enfermeiro segurava um frasco de vidro com um líquido qualquer a escorrer às gotas para o braço de um preto, com uma perna toda entrapada. Do outro lado, o Gil com o saco do correio na mão. Tudo OK ? O piloto, tenente Melo, apresentara-se, pelos auscultadores. Que no trajecto para Bissau faria um desvio para a área de Canjambari, a pedido do Coronel, largar os dois sacos às nossas tropas e que, quando levantasse o polegar, e repetira, só quando o polegar estivesse virado para cima, deveriam lançá-los pela janela.

Dornier no ar para Canjambari, fumos aqui e ali a subir das matas, charcos de água a espelharem. O preto ferido, medo estampado nos olhos muito abertos, a farda nova ainda, verde azeitona, seria do PAIGC? O enfermeiro, a fazer ginástica com o frasco e com a cabeça a dizer que sim. O capelão à frente, suor a escorrer, a cara muito branca, mãos amarradas ao saco com pão fresco. O Sol ainda alto. O piloto a falar com a base, olho num lado e noutro. Estavam na zona, iriam baixar.

A planar, quase parado, como um milhafre, a descer lentamente, os olhos deles arregalados para a mata. Onde é que está a nossa malta? Mais uma volta. Estão ali, debaixo daquela árvore, não? O tenente Melo não estava certo.

Desceram mais, até alguns metros acima das copas das árvores, são eles, não são? Os outros não responderam, não paravam de olhar. São eles, não são? Força, abrir janelas, mãos nos sacos, como se já não estivessem, a turbulência a sentir-se.

Nova passagem, agora é mesmo, olhem para a minha mão, polegar para cima janela fora com os sacos, o piloto.

Gil num segundo viu a árvore, viu-os lá em baixo a correr, àquela altura as fardas deles pareceram-lhe iguais à do ferido que ia com eles. Quando o piloto levantou o polegar, hesitou, ficou com o saco do correio na mão, o do pão já tinha saído.

Mesmo mais tarde, tentando rever a sucessão dos acontecimentos, não era capaz de dizer o que sentiu primeiro. Tudo ao mesmo tempo, uma rajada longa, os gritos dentro da avioneta, um ciclone lá dentro, um barulho como uma câmara-de-ar imensa a esvaziar-se, o Dornier a balançar para cima e para baixo, para a esquerda, para a direita…

No voo para Bissau, o guerrilheiro ferido gritou o tempo todo, atingido na mesma perna, mais um tiro, soube-se depois, o DO dançou sempre, a turbulência aumentou e um cheiro a cocó borrou-os a todos.

Na pista, finalmente! De costas no chão, Agfa na mão, os buracos das balas na barriga do Dornier. E uma grande roda escura também, nas calças do capelão.


8.CAPITÃO MANILHA

Grupos em sentido na parada. Porta fechada! A que horas estava marcada a instrução dos grupos? Às 21? E que horas têm? 21h02? Às 21h00, 1 ou 2 minutos depois são outras horas, ou não? Um minuto, meu capitão, desabafa um! Uns bardamerdas, é o que vocês são, os gajos fazem o que querem de vocês!

Não faço parte desta peça, meu capitão, o meu grupo estava pronto às 5 para as nove, protesta-lhe nos olhos outro! O capitão, a fisgá-lo de lado, ainda mamam da mamã, o que me calhou, porra! Já não me lembro de mamar, outra vez o outro.

Manilha pára, vira-se de frente, olha-o de baixo para cima, dispara, ouça lá seu alferesinho de merda, você acha que não sou capaz de o pôr daqui para fora ao murro e pontapé? Vamos, meu capitão, avança o tal, preparado para tudo.

Manilha tira a boina, passa a mão pelo cabelo, três a olharem para o lado, o outro à espera. Esta, suas meninas, esta, martela o capitão, com a mão virada para o tal, é a única, a única resposta que um comando pode dar! Todos à minha frente, 20 flexões para todos, grupos incluídos.

O capitão Manilha, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a medalha de valor militar em ouro, mais duas cruzes de guerra, tinha metido o chico (1) , estava em Lisboa na Academia Militar. Aproveitara as férias, viera a Bissau dar-lhes instrução operacional, e saíra com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos na Guiné.

Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o alferes Justo dos Camaleões, os irmãos R. Dias, o Mirandela e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de lés a lés. Ficou famoso pela forma como encarava a guerra, como se fosse uma brincadeira de garotos. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.

Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram problemas.

Novembro de 64, dia 28. Na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro. Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros.

No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou dezasseis militares no Unimog maior atrás. A 1ª viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. Ao mesmo tempo que em cima deles caía uma chuva de balas de armas automáticas, o Unimog incendiou-se e as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto. Quase todos os homens foram projectados a arder. 7 mortos logo ali e três feridos graves. Tinham partido 22 de Bissau, regressaram doze. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.

Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul. No diário do furriel Uva, um deles, podia ler-se.

“6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação 'Ciao'.

"Num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Varela foi connosco.

"Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Ina, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo 'Comandante Nino'.

"Já na madrugada do dia 7, a poucos kms do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário.

"Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sw de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga.

"8 armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.

"Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro de 88 (?), até então ainda não apreendido na Guiné!

"O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Manilha chamou o Amadu e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadu. Ofereci-me bem assim como o capitão Varela, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.

"De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo.

Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.

"Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me.

"Deitei-me e reagi ao fogo, mas passado pouco tempo fiquei sem força no braço, a G-3 ficou muito pesada, e depois já nem o gatilho conseguia apertar. Passei a espingarda para o braço esquerdo e fiz fogo, mas julgo que não fui nada eficaz.

"Os outros 8 camaradas, embora ligeiramente, foram todos atingidos. Depois os restantes elementos do Grupo foram lá buscar-nos. Junto do pelotão de apoio, injectaram-me morfina. Tinha perdido muito sangue. Prestaram-me os primeiros socorros em Cacine.

"Fomos evacuados para Bissau. Eu de barriga para baixo, bem atado, com mais uma injecção de morfina, e o Morais, morto, cada um em macas de lona, encaixados no exterior do heli.

"Durante o trajecto, e em duas localidades diferentes, na minha sonolência ouvi rajadas de metralhadora que me pareceram passar rente ao helicóptero. Pareceu-me uma eternidade a viagem até ao hospital de Bissau, onde, depois de me terem operado, fiquei internado.

"8 Maio. O Marcolino foi o primeiro a vir ver-me ao Hospital. O crucifixo que eu trazia ao peito era uma crosta, uma grande cruz de sangue seco. Pedi-lhe que o lavasse.

"9 Maio. Muitos camaradas me visitaram hoje, o major M. Dias, o tenente Manilha, o alferes Rola, os furriéis Matos, o Moita e o Mirandela, claro. Da parte da tarde vieram a D. Beatriz Sá Carneiro, mulher do Comandante Militar e a D. Mariana do MNF.”

O Morais era órfão de pai. No caso dele correu tudo no mesmo sentido. Mal. Não era necessário a presença dele nesta operação. Aliás, já tinha acabado a comissão. Em Brá tentámos persuadi-lo, mais que uma vez, a não ir. Tantas vezes, que diferença vai fazer sair mais uma, insistiu.

Não embarcou com o Batalhão a que pertencia, por ter combinado que esperava que o Ten. Manilha e os furriéis Matos, Moita e Ilídio acabassem a comissão. A estes faltavam-lhes apenas 15 dias. Imaginava o regresso à Metrópole, todos juntos num navio, como se regressassem de um cruzeiro de férias.

Guiné > Cemitério de Bissau > 1965/66 > Os militares portugueses tinham de se quotizar, entre si, para comprar um caixa de chumbo e enviar os seus camarados mortos para a Metrópole... Como foi o caso do furriel milicano comando Morais, morto em combate.

© Virgínio Briote (2005)


O Mirandela recebeu o corpo no Hospital. Foi ele com o M. Dias, o Fabião e o Ilídio que o lavaram, vestiram e o deitaram no caixão. Fizeram uma colecta para a compra do caixão de chumbo. E coincidência, morreu no mesmo dia em que o seu Batalhão desfilava em Lisboa, com a missão cumprida.

Claro que, fosse para onde fosse, o Manilha trazia com ele esses e outros acontecimentos, como se uma auréola o enfeitasse.

Quando o capitão Manilha entrou em Brá apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Varela, o sargento M. Dias, os furriéis Mirandela, Moita, Matos, Fabião, o João Uva, o cabo Marcolino, os soldados, Mássimo, Camará, Mamadú... Dos novos conhecia alguns, e aos outros tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria se lhes entregaria o crachá.

Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino (2) à baila. O Nino, estão a olhar para mim? O Nino, que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino , ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido, porra!

E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.

Uma vez, em Biambi, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!

A chuva não parava, pareciam pedras grossas, faziam tanto barulho no camuflado que até sentiu medo que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente.

Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que…assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado não via nada, nem pirilampos, nada, só ouvia o barulho da água a bater-lhe. E agora, o que faço?

Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem? Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, a corta mato, sempre em frente, até á estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Minutos a durarem horas, o coração outra vez.

Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobios cada vez mais próximos, uma mão, o Mássimo, o Manilha atrás. Então e os outros? O Manilha, danado, a bufar, e os outros? Mássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Varela e o Vidraças, os dois sentados, costas com costas. Nabos, a dormir na forma, ah?

No outro sábado o Manilha encontrou-os todos sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é? Um a dizer vou até Bissau espairecer, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o Duque, o outro, sei lá? Ele arranjava um melhor! Que se preparassem. Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar.

Foram para leste, Nova Lamego, Canquelifá (****). Chegaram o Sol a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados. Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com a lona corrida. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Manilha, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca.

O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passa, o Manilha a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva. Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.

Carvão negro na cara e nos braços, pareciam manjacos e mandingas. Pôs-se o sol, meteram-se no mato, dois a dois, trilhos fora, quilómetros e quilómetros, a noite toda.

Comandos ao ataque, o Manilha desalmado a gritar, como gostava de começar o dia! Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados, a pisgarem-se. Depois, um deles passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater na árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar (3) ! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?

Nunca souberam donde tinha vindo tanta gana, se calhar tinha sido quando o Manilha, finalmente, autorizou meterem água, devia ter vitaminas. A certa altura do caminho de retirada, começaram a ficar sem forças. Estranharam, nunca lhes tinha acontecido, não acertavam com o trilho, não era só um, eram todos. Menos o Manilha. Alguns paravam, encostavam-se às árvores, queriam sentar-se, os olhos para cima. Quem parar fica para trás, o Manilha lá à frente, na esgalha.

Em Canquelifá, uma cerveja gelada, boca abaixo, duma vez só. Alguns só acordaram com os motores do Dakota e um ou dois nem assim. A caminho do avião, pareciam zombies, em coluna por um, pelo campo fora.

Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar! É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana!

Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora! Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.

Um cigarro agora é que sabia bem! Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado! Fumas no fim do fogo! O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas deles em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o Manilha a provocá-los.

Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, pouca coisa para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra! 20 flexões aí já, o Manilha oportuno como sempre!

Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar!


9. ESTREIA NO OIO

Final de tarde em Mansoa, o grupo pronto para a estreia. Dentro das Mercedes tapadas com as lonas, aguardaram que o capitão Manilha e o comandante do grupo acertassem os pormenores com o comandante do batalhão. Para matar a espera, meteram-lhes lá dentro pão, queijo, marmelada e cerveja.

As viaturas da coluna para Bissorã já se tinham posto em movimento quando as deles arrancaram rápidas até se chegarem às outras. Andaram uns quilómetros, poucos, até receberem a indicação para se aprontarem para saltar. Teria que ser muito rápido, as viaturas em que iam abrandariam só, as da frente continuariam no sentido de Bissorã.

Internados no mato esperaram o reagrupamento, a noite a fechar-se não lhes prometia tempo seco. Puseram-se em movimento, como lhes ensinaram. O capitão, uma vez ou outra saía do trilho, ficava-se a vê-los passar, surgia-lhes por trás, G3 apontada, era uma vez um comando, assim não vais longe, pá, vai antes para a manutenção.

À frente o Marcolino segurava o guia, apanhado há mais de um mês, rédea curta nos pés, braços esticados nas costas, bem atados com uma corda preta de nylon, lenço preto entre os dentes, que todos os cuidados eram poucos.

A companhia de apoio seguiu atrás do grupo até o trilho bifurcar, emboscou-se aí a aguardar o desenrolar dos acontecimentos. No caso de lhes ser pedido, veriam a melhor maneira de os recolher. Estes deveriam progredir até Biambe, procurar as casas de mato, tentar apanhar uma sentinela, explorar rápido e retirar a seguir. Noite escura, sempre a chover, progressão lenta, paragens e mais paragens, guia a dizer que é lá, aonde, ali já, e nunca mais era.

Dois tiros! Detectados num trilho, mesmo junto à tabanca de Iusse. Responderam à voz do Manilha, atiraram e atiraram-se lá para dentro. 4 casas de mato, ninguém lá dentro!

O Manilha não queria sair da zona, nem a tiro. A primeira operação a seco, nem pensar! Vamos aguentar aqui, dentro da mata, até o dia clarear. Os gajos sabem que nós estamos cá e nós sabemos que eles estão na mata aqui à volta. Vão acabar por se mostrar.

Não foi preciso esperarem que fosse dia. De um momento para o outro, começaram a ser alvejados. Fogo alto, a bater nas copas das árvores. Uns minutos depois, começaram a ser flagelados com fogo de morteiro, do lado de onde tinham vindo. Das matas em redor, flagelavam-nos com tiros de armas automáticas e, para compensar, recebiam morteiradas, do lado da bolanha.

O Manilha ao AN PRC/10 (4), queria saber o que era feito da companhia de apoio, esta não dava sinal. Chegou uma parelha de T6.

Um espectáculo seguido com expectativa e interesse. Pelo AVF (5) o Manilha ficou a saber que era verdade o pressentimento. Da companhia de apoio subiam granadas, viam o fumo atrás, confirmavam os dois pilotos, a trajectória delas quase a pique, o estardalhaço a cair-lhes quase em cima, com a chuva. Estavam bem abrigados, dali não sairiam tão cedo a não ser que os morteiros da tropa amiga se calassem.

A parelha dos T6 tinha sido reforçada com outra, despejavam rockets e rajadas de metralhadora sempre que viam fumos a sair da mata. O fogo IN abrandou e os morteiros da companhia silenciaram-se.

O apoio aéreo ajudou-os, pareceu-lhes mais demorado que o que deveria ser, mas, por fim, retiraram em ordem, com o fogo inimigo, disperso mas mais ajustado, a dar-lhes algum trabalho, obrigando-os a percorrer, curvados, as centenas de metros da bolanha., largamente distanciados uns dos outros.

Respiraram fundo quando alcançaram a mata. Nem bom dia nem boa tarde, passaram pela companhia, deixada para trás como se tivesse lepra, o capitão deles junto ao Manilha, desculpas e explicações.

Que regressassem sozinhos, connosco não, que temos pressa. A esgalhar, no goss-goss (6) como diziam a imitar os indígenas, pelas margens do trilho.

_________

(1) Passar ao quadro permanente

(2) Famoso Chefe da guerrilha, na altura responsável militar da zona sul

(3) “Sábado, 21Ago65, descemos em Nova Lamego, embarcámos os guias e depois fomos para Canquelifá. Daí seguimos para o objectivo.Já dentro do acampamento IN cairam-nos várias rajadas em cima e o Marcolino que devia estar distante de mim pois não dei por isso foi ferido com uma bala nas costas, e eu como estava perto de uma árvore várias lascas bateram-me na cara de raspão. João Uva, do diário”

(4) Rádio normalmente usado para comunicações em terra

(5) Rádio para comunicação terra-ar

(6) Termo indígena, andar depressa

(*) Vd. posts anteripores:
28 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVIII: Brá, SPM 0418 (1): as minhas memórias de Cuntima (Virgínio Briote)

8 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVII: Brá, SPM 0418 (2): Memórias de Colina do Norte (Virgínio Briote)

(**) "Cuntima era uma rua, uma recta de 200 ou 300 metros, a estrada de terra a atravessá-la, entre a saída para Jumbembem e Farim e a entrada da fronteira com o Senegal. Casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima, casitas de adobe atrás, da população nativa".

(***) A leste de Farim

(****) Canquelifá: No nordeste da Guiné, junto à fronteira

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