01 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal



Post nº 326 (CCCXXVI)


Capa dos cadernos do ex-ranger Magalhães Ribeiro. Pode ler-se: (1): Em Lamego... ser ranger; (ii) Em Tomar... participar no 25 de Abril; (iii) Em Mansoa, Guiné... arriar a última Bandeira.

© Magalhães Ribeiro (2005)


1. Texto do Magalhães Ribeiro (ex-furriel miliciano de Operações Especiais, da CCS do BCAÇ 4612), o tal que em 9 de Setembro de 1974 arriou a última bandeira portuguesa, no quartel de Mansoa (1), na presença de altos representantes do PAIGC que, por sua vez, hastearam a bandeira da nova República da Guiné-Bissau... Ele vive e trabalha actualmente no Porto.


Boa noite, amigo Luís Graça:

Estava para aqui a teclar e a enviar uns mails ao pessoal, e lembrei-me de te enviar uma parte do resultado de um dos meus hobbies, quando disponho de algum tempo e muita disposição para isso... que é rabiscar o papel.

São coisas que me vão ocorrendo e que só costumo dar a ler aos amigos. Se achares interessante colocar algum dos textos no blogue, para os nossos amigos lerem... dispõe!
Fico a aguardar que me digas qualquer coisa.

Continuo a falar com o Furriel Miliciano Ranger Casimiro de Carvalho, que esteve no coorredor da morte - Guileje e Gadamael -, para ultimar o texto e juntar alguma das excelentes fotos que ele possui daquele inferno e me deu autorização para, caso achares interesante, inserires posteriormente no blogue.

Um abraço amigo do M.R. de Mansoa.


2. O que o Ribeiro me mandou foi um carderno, de 47 páginas, onde ele conta, em verso, as peripécias da sua atribulada vida militar. Vou chamar a estes cadernos o Cancioneiro de Mansoa, por analogia com o Cancioneiro do Niassa. Está imbuído da ideologia ou (da mística) ranger, não é uma obra colectiva, é escrito por um dos últimos guerreiros do Império e, para mais, ao longo dos anos que se sucederam ao 25 de Abril de 1974 em que o autor também participou... O Cancioneiro do Niassa tem outra origem, outro contexto, outro tom... De qualquer modo, o Magalhães Ribeiro e os seus camaradas de operações especiais não me levarão a mal se eu chamar Cancioneiro de Mansoa ao conjunto destes versos, ditados pela nostalgia do império perdido e pela afirmação do valor e do patriotismo do soldado português. Aqui fica a introdução aos cadernos (uma nota explicativa da sua origem e razão de ser):

"O meu velho gosto pela escrita sempre me impulsionou para, ao longo do tempo, alinhavar algumas palavras em bocados de papel, que ia guardando com as minhas outras relíquias, sem qualquer pretensiosismo, por ali, nas gavetas.

"Entretanto, li num dos jornais da Associação das Operações Especiais - da qual sou um dos orgulhosos sócios -, um apelo à colaboração de todos os Rangers, na sua composição, através do envio de artigos, contos, estórias, histórias, etc.

"Pensei então, modestamente, que os meus escritos talvez pudessem ter algum interesse para o efeito e, caso assim fosse julgado, cooperaria com muito gosto.

"Pelo que peguei nos velhos papéis e fui-os passando para outros papéis mais limpos, sem preocupações de qualquer requinte poético ou intelectual, propositadamente, através de linguagem popular e directa, de modo a ler-se e perceber-se o que realmente penso e sinto sobre as coisas e loisas de que eu gosto, sem outras interpretações ou distorções.

"Neste caderno reuni aquilo que diz respeito ao meu serviço militar que, por ter sido muito diversificado, dinâmico e histórico, constituiu para mim uma fonte inesgotável de aprendizagem, experiência, orgulho e inspiração.

"Como não podia deixar de ser, dedico especial atenção aos seus momentos mais altos: (i) o Curso de Operações Especiais, em Lamego; (ii) a participação no 25 de Abril; (iii) a comissão na Guiné; e, por fim, (iv) o arriar da última Bandeira Nacional em Mansôa.

"A todos os bons amigos que tiverem paciência para lerem este caderno o meu abraço e o meu obrigado".

3. É a propósito desse episódio (histórico) que foi o arriar da nossa última em território da Guiné (1), que se transcreve uma das reflexões poéticas do Ranger Ribeiro. A seu tempo iremos transcrevendo e comentando outras partes interessantes destes curiosos cadernos, que passam a ser baptizados, por mim, como Cancioneiro de Mansoa. O Magalhães Ribeiro pediu-me a minha opoinião, aqui a tem...


Mansoa, a última Bandeira


Com o emblema de Ranger no peito
O destino seguinte foi Évora
Foi um período de descanso, depois,
Daquela especialidade dura.

Corria o ano de setenta e quatro,
O primeiro dia de Fevereiro,
Quando saíram as mobilizações

P’rá Guiné, um Batalhão inteiro.

Depois dos serviços ali prestados
E, pr’ó Vietname mobilizado,
Tarecos às costas mais uma vez
E fui conhecer Tomar, encantado.

O encargo, ali, era severo
Na 1ª Companhia d’Instrução,
Trinta soldados especializar
Daquele famigerado Batalhão.

Mas, eis que passados uns dias,
O 25 de Abril estalou,
Começou a pedir-se o fim da guerra
E nunca mais ninguém se calou.

É anunciado o fim da guerra
E, logicamente, fomos pensando
Que p’rá Guiné já não iríamos
E o tempo lá se foi passando.

As orientações superiores
Porém, mantinham-se inalteradas:
“Instrução contínua e inflexível…
Disciplina e moral elevadas”.

Passados dois meses sobre a revolução
Continuávamos mobilizados
E seguimos p’ra S.ta Margarida
Formar Batalhão e ser vacinados.

Até que a hora do embarque chegou,
O último Batalhão p’rá Guiné…
Tomava assento num avião…
Bissau e, horas depois, Cumeré!

Mais uns dias se passaram, pacatos,
E nova viagem… para Mansôa,
Pequena vila em terra Balanta
Onde sem a guerra... a vida era boa.

Assim, no dia 9 de Setembro,
Foi determinado superiormente
Entregar
este quartel aos turras,
Oficial e cerimoniosamente.


- Você, entrega a cantina de manhã!...
Diz o Comandante com resolução.
- E de tarde, vai arriar a bandeira...
Avance firme e sem hesitação!

De manhã entreguei o estipulado
A um PAIGC com ar simplório
A arrecadação de géneros...
A cantina e o refeitório.

À tarde começaram a surgir pretos,
Às centenas, de todos os cantos,
A pé ou em camiões, amontoados;
Nunca pensei qu’eles fossem tantos.

A certo momento, todo a rigor,
Surgiu em marcha cadenciada
Um grupo de combate dos turras
E, mais atrás, uns pioneiros... em parada.


Guine > Mansoa > 9 de Setembro de 1974: Arriando a última bandeira portuguesa...


















Muitos fotógrafos, jornalistas, e…
Convidados das Comunidades!
Após as apresentações da praxe
Deu-se início às formalidades.

Frente à nossa tropa ali formada,
Ondulava ao vento a Bandeira,
Parecia acenar um longo adeus
Àquela inóspita torreira.

Ao avançar para o velho mastro,
Pensava nas contradições do acto
Cada passo era um certificado,
Que o fim da guerra... era um facto.

Por a sua vida já não arriscarem
Os periquitos rejubilavam,
Enquanto tristes e conformados
Os ex-combatentes choravam.

Guiné-BIssau > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 > Hasteando a bandeira da República da Guiné-Bissau...


















Toca o clarim… o Hino Nacional…
A nossa Bandeira foi retirada
E, para regozijo dos PAIGC
A deles, Guiné-Bissau, foi içada.

Nas fotos e entrevistas finais,
Entre tudo aquilo que foi dito,
Duas perguntas retive na memória
E penso dever ficar aqui escrito:

- Que pensa da política salazarista?...
- E sobre os qu’aqui perderam a vida?
- Os erros políticos pagam-se caros!...
- Pelos mortos, veneração sentida!

(...) A bandeira ondulava ao vento firme e formosa,
O mastro desceu, aprumada, em atitude imperial.
À multidão, ali em Mansôa, parecia afirmar:
- Aqui, esteve presente… o esplendor de Portugal!

Autoria e créditos fotográficos:
© Magalhães Ribeiro (2005)


NÃO ERA UMA BANDEIRA QUALQUER


A Bandeira ondulava ao vento... firme e formosa,
Naquele alto e velho mastro do quartel... como voa,
O esplendor de Portugal garantia... assaz vaidosa.
Quanta veneração em sua honra... e quanta loa,
Tais façanhas heróicas dali presenciou... orgulhosa!
Bradai - às armas - lusitanos... se o inimigo soa,
Qu’Ela é o símbolo magno de união... gloriosa,
S’ameaça à Pátria algum inimigo... apregoa!
Qu’a garra deste povo... tem engenho e arte talentosa,
P’ra levar de vencida... que seja a besta em pessoa!
Qu’ali num naco d’África cumpriu de forma honrosa,
Dando mostras de valor indómito qu’inda hoje ecoa!
Até q’um dia no país se levantou tropa revoltosa,
Reformando a política do Ultramar... em Lisboa,
E qu’emanou então para Bissau determinação rigorosa;
Que em Portugal, a liberdade é bombarda qu’atroa,
E independência às colónias concedeu airosa,
Em assinatura... cuja data ainda hoje ressoa;
Nove de setembro de setenta e quatro... luminosa.
Também, nesse dia, a Bandeira foi arriada em Mansôa,
Pondo termo a séculos de História maravilhosa,
Pela derradeira vez... em cerimónia digna da “Coroa”,
Perante multidão exultante... e soldados da Nação briosa.
E, assim, a Guiné... sua sorte... embarcou em nova canoa!


Ranger Magalhães Ribeiro - Furriel Mil.º da CCS do Batalhão 4612/74 - Mansoa/Guiné


Nota: A última Bandeira Nacional, arriada na ex-Guiné portuguesa, com cerimónia oficial e honras militares, ocorreu em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974. A Bandeira encontra-se actualmente exposta no Museu do Centro de Instrução de Operações Especiais, na cidade de Lamego, desde Julho de 1997.




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(1) Vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)


(2) vd post de L.G. de 11 de Maio de 2005 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa (1)

Vd. também a página do nosso camarada, o ex-fuzileiro Jorge Santos, que esteve no Niassa (1968/70), e que foi o primeiro a publicar, na Net, uma antologia das canções do Niassa, recolhidas por ele e proibidas de serem cantadas em público até ao 25 de Abril de 1974 (A Guerra Colonial > Canções do Niassa)

E#m 11 de Maio de 2005 deixei expressa a minha homenagem J.M.A. Santos (hoje, membro da nossa tertúlia) "pelo seu notável trabalho de recolha, preservação e divulgação desta documentação tão efémera mas tão importante para a sociologia histórica da guerra colonial, incluindo o estudo das representações sociais do turra, o invisível e obíquo inimigo que combatíamos em Moçambique, Angola e Guiné". No total a recolha de J.M. A. Santos ultrapassa as 40 canções, disponíveis no seu site.

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