26 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCCXV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (4): A acção psicossocial


Texto do João Varanda (ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636, Có 1969/71).


© João Varanda (2005)



A CCAÇ 2636 vivia Có nas suas 24 horas (1). A moral da companhia era sempre muito elevada, os sucessos já tinham surgido de forma muito significativa, a autoconfiança era enorme e tudo apontava para a continuação da boa estrela que nos estava a acompanhar. A nossa entrega era total, assim fomos compreendendo que muito havia a fazer encaixando-nos no sistema para que tudo se tornasse mais fácil. Para a Companhia era certo que em tempo de guerra teríamos de ser pau para toda a obra, tínhamos muito trabalho pela frente, por isso era extremamente necessário pôr mãos a toda aquela obra.

Colocada a tropa no terreno, as nossas acções na área foram sempre muito objectivas. O inimigo não se furtava a um contacto decisivo, naquele sector eram as nossas forças que comandavam e, como o inimigo não se colocava a descoberto, era por isso importante trabalhar na vertente social da campanha.

Vou respigar de memória alguns episódios para enaltecer o valor da campanha de apoio social, moral e médico que demos, à margem dos combates, às populações e aos nossos próprios homens.

Como Có era uma pequena e exígua tabanca, a dureza do conflito sobrepunha-se à sua riqueza e importância territorial, sustentando-se mesmo assim uma economia de mercado que permitia, sem dificuldade, assegurar a sobrevivência de uma população de poucas exigências. Seguindo a orientação de Spínola, conseguimos construir uma pequena urbe, abrindo caminhos, desenvolvendo a economia, melhorando o nível de vida das gentes locais.

Sobre a vertente social da campanha deixamos umas breves notas do conjunto de actividades encetadas a vários níveis de actuação:

1 – A tenda de campanha a CCAÇ 2636 possuía posto de socorros permanente para efeitos operacionais, constituindo uma mais valia não só para as tropas que ali viviam em ambiente de combate intenso, como também para as populações africanas, que usufruíam dos seus serviços assistenciais.

A equipa, tulelada pelo Furriel Miliciano do Serviço de Saúde António Silva Pratas e três Cabos enfermeiros, compenetrados da sua missão e sempre animados do melhor espírito de colaboração, desempenharam sempre tais funções com muito mérito e dedicação.

Era gratificante presenciar esse quadro diário. Muito cedo pela manhã, a população acampava junto ao Posto de Socorros em filas permanentes de mulheres, homens e crianças com a orientação do chefe de tabanca ou a um seu delegado que, por vezes, servia ao mesmo tempo de intérprete quando tal se justificasse. A maioria da população necessitava de acompanhamento clínico, devido a doenças endógenas de foro tropical, com base no paludismo. A prescrição era na maior parte das vezes com base em comprimidos ou injecção, para os africanos a aceitação da injecção era melhor, sem pruridos de qualquer natureza, coxas e rabos eram mostrados à espera de penetração da agulha. Toda a medicação era fornecida gratuitamente pelas Forças Armadas.

Ainda na vertente da saúde, diariamente se visitavam várias tabancas em busca de casos e de situações mais complexas ou mais raras que necessitavam de observação, diagnóstico ou tratamento. Casos que existiam, esconsos, envergonhados, escondidos na sombra de alguma miséria profunda. Nestes e em todos os outros que se impusesse, era providenciada imediata evacuação para Bissau, por via terreste, com escolta, ou por via aérea, conforme a urgência e a gravidade da situação encontrada.

Sobre os cuidados de saúde ministrados às populações, algumas outras reflexões compete aqui traçar. A primeira, para revelar a grande competência e, fundamentalmente, a extrema dedicação de todos os que connosco trabalharam, com parcos meios à sua disposição, com pessoal desprovido de formação, com largas de dezenas de consultas e tratamentos diários, com situações clínicas invulgares em muitos casos para abordarem. Eles foram, no seu ofício, heróis assumidos desta guerra particular.

A segunda nota é para descrever, em poucas palavras, situações vividas no terreno para provar a nossa ligação sentimental e efectiva aquela gente, tão profunda que nunca poderíamos regatear qualquer tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que o imperativo da missão, era a solidariedade verdadeira que nos movia. Dos muitos exemplos, escolho o daquela bajuda que iria ser mãe pela primeira vez.

Cerca das 3 horas da manhã, o chefe da tabanca contacta com o quartel transmitindo a necessidade de apoio médico à dita bajuda que, com o passar das horas, não dava sossego nem tranquilidade na tabanca. De imediato um camarada de serviço de segurança ao quartel foi ao abrigo subterrâneo à procura do primeiro que estivesse à mão para dar apoio e resolver a situação. Escusado será dizer a azáfama do pessoal dos serviços de saúde perante aquele caso que nunca se nos tinha deparado.

Após uma mini-reunião prestou-se-lhe os primeiros socorros e tomou-se a medida adequada, que era evacuação para Bissau para o Hospital Civil. Assim, e de imediato, a bajuda foi colocada no primeiro veículo à mão (por acaso o jipe cedido pelo Capitão Medina e Matos) e lá foi na companhia de um enfermeiro, um homem de transmissões e um atirador de metralhadora.

Estrada fora, lá foram os nossos camaradas, com as luzes do veículo nos máximos, num acto de desprezo pelo adversário, a todo o gás, direitos a João Landim, com o homem das transmissões a contactar com os fuzas para nos proporcionarem àquela hora a disponibilidade da jangada para fazermos a travessia rumo a Bissau. Cerca das 5 horas da manhã, esta malta dava entrada com a bajuda no hospital e, enquanto no guichet de atendimento entregávamos a papelada para tratamento de dados, ela seria mãe de um rapagão a quem foi dado o nome Mamadú Baldé.

2 – As gentes africanas de Có e subúrbios eram inconfundíveis: de grande estatura e carisma, eram irmãos de sangue e de luta pela mesma causa. Enaltecer os seus predicados seria esgotar toda uma panóplia de adjectivos. Por muito que o tentasse nesta singela crónica, não teria palavras para o fazer.

Naturalmente simpáticos, empenhados, compreensivos e sensíveis a todos os nossos argumentos, entre eles e nós havia uma empatia total, uma identificação absoluta em torno de todo o tipo de problemas desde os operacionais até aos da vivência da tabanca. Tudo se processava entre nós num perfeito sincronismo e entendimento, franco, despido de preconceitos.
Era muito fácil conviver com esta gente. Isto para dizer que, após todas as prestações de consultas de primeiros socorros, a tenda da enfermaria mais parecia um aviário de frangos e galinhas ofertados pelos pacientes, permitindo-nos depois fazer fabulosos pitéus nos momentos mais condicionados pela fome e pelo cansaço. Recusar a oferta de galinha ao africano era ofensa impensável.

3 – No percurso operacional tivemos um comportamento modelar, na área do bem-estar e do apoio social tudo também fizemos para colmatar muitos problemas locais, quer das NT, quer da população em geral. Para o bem-estar do pessoal, ao fim de pouco tempo, construímos um novo conjunto de cozinha, refeitório e cantina/bar para as praças.

Construímos ainda um espaçoso e seguro paiol subterrâneo para as centenas de granadas que jaziam praticamente a céu aberto, um sistema de filtragem de águas para beber e para banhos, uma oficina auto com fossa para lavagem e lubrificação de viaturas, com água corrente, para os nossos Unimog - para os grandes Furriel Marques e Teodoro Simões ( Nanza) nos proporcionarem transporte seguro -, um heliporto para evacuação de feridos e doentes para a capital Bissau, um sugestivo e elegante monumento alusivo à nossa passagem pela aquela terra, evocando os nossos mortos brancos e africanos. O qual, mais de trinta anos depois, ainda se mantém incólume e erecto conforme me relatou o Capitão do PAIGC Eduardo Sanhá que veio, após o final de guerra colonial, cursar Direito na Universidade de Coimbra.

Capinámos os principais troços das estradas envolventes ao destacamento de Có, reparámos aquelas mais necessitadas, construímos ou melhorámos pontes e pontões. Em relação à população africana, dadas as condicionantes da guerra envolvente que limitavam, por razões de segurança, as áreas agrícolas aproveitáveis, disponibilizávamos meios pessoais e viaturas para os enquadrar nas suas safras diárias, permitindo assim uma actividade agrícola e pecuária razoavelmente normal e produtiva.

Para salvaguarda do bem-estar e equilíbrio emocional do pessoal, junto ao improvisado estaleiro de apoio da brigada de engenharia, para a feitura da estrada Có – Pelundo construímos um campo para a prática do futebol, fenómeno universal e abrangente, que servia às mil maravilhas para descomprimir, sendo a sua utilização diária. Largas e longas tardes dedicámos ao jogo da bola.

Ampliamos a tabanca de Có com habitações construídas com uma espécie de argamassa feita de barro e capim seco com cobertura a colmo de palmeira ou chapa de zinco, made in U.S.A., à porta das quais se plantaram duas bananeiras, sinal vivo de África.

Todos estes tipos de apoio às populações autóctones - que em guerra clássica de guerrilha como era aquela é absolutamente fundamental e constante em todos os manuais que tratam o assunto -, eram feitos por nós não só com esse intuito. A nossa ligação sentimental a essa gente era tão profunda, que nunca poderíamos regatear qualquer tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que os imperativos da missão, era a solidariedade que nos movia.

(Continua)

____

(1) vd posts anteriores do João Varanda:

15 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Cupilom...


16 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"...

Guiné 63/74 - CCCXV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (4): A acção psicossocial


Texto do João Varanda (ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636, Có 1969/71).


© João Varanda (2005)



A CCAÇ 2636 vivia Có nas suas 24 horas (1). A moral da companhia era sempre muito elevada, os sucessos já tinham surgido de forma muito significativa, a autoconfiança era enorme e tudo apontava para a continuação da boa estrela que nos estava a acompanhar. A nossa entrega era total, assim fomos compreendendo que muito havia a fazer encaixando-nos no sistema para que tudo se tornasse mais fácil. Para a Companhia era certo que em tempo de guerra teríamos de ser pau para toda a obra, tínhamos muito trabalho pela frente, por isso era extremamente necessário pôr mãos a toda aquela obra.

Colocada a tropa no terreno, as nossas acções na área foram sempre muito objectivas. O inimigo não se furtava a um contacto decisivo, naquele sector eram as nossas forças que comandavam e, como o inimigo não se colocava a descoberto, era por isso importante trabalhar na vertente social da campanha.

Vou respigar de memória alguns episódios para enaltecer o valor da campanha de apoio social, moral e médico que demos, à margem dos combates, às populações e aos nossos próprios homens.

Como Có era uma pequena e exígua tabanca, a dureza do conflito sobrepunha-se à sua riqueza e importância territorial, sustentando-se mesmo assim uma economia de mercado que permitia, sem dificuldade, assegurar a sobrevivência de uma população de poucas exigências. Seguindo a orientação de Spínola, conseguimos construir uma pequena urbe, abrindo caminhos, desenvolvendo a economia, melhorando o nível de vida das gentes locais.

Sobre a vertente social da campanha deixamos umas breves notas do conjunto de actividades encetadas a vários níveis de actuação:

1 – A tenda de campanha a CCAÇ 2636 possuía posto de socorros permanente para efeitos operacionais, constituindo uma mais valia não só para as tropas que ali viviam em ambiente de combate intenso, como também para as populações africanas, que usufruíam dos seus serviços assistenciais.

A equipa, tulelada pelo Furriel Miliciano do Serviço de Saúde António Silva Pratas e três Cabos enfermeiros, compenetrados da sua missão e sempre animados do melhor espírito de colaboração, desempenharam sempre tais funções com muito mérito e dedicação.

Era gratificante presenciar esse quadro diário. Muito cedo pela manhã, a população acampava junto ao Posto de Socorros em filas permanentes de mulheres, homens e crianças com a orientação do chefe de tabanca ou a um seu delegado que, por vezes, servia ao mesmo tempo de intérprete quando tal se justificasse. A maioria da população necessitava de acompanhamento clínico, devido a doenças endógenas de foro tropical, com base no paludismo. A prescrição era na maior parte das vezes com base em comprimidos ou injecção, para os africanos a aceitação da injecção era melhor, sem pruridos de qualquer natureza, coxas e rabos eram mostrados à espera de penetração da agulha. Toda a medicação era fornecida gratuitamente pelas Forças Armadas.

Ainda na vertente da saúde, diariamente se visitavam várias tabancas em busca de casos e de situações mais complexas ou mais raras que necessitavam de observação, diagnóstico ou tratamento. Casos que existiam, esconsos, envergonhados, escondidos na sombra de alguma miséria profunda. Nestes e em todos os outros que se impusesse, era providenciada imediata evacuação para Bissau, por via terreste, com escolta, ou por via aérea, conforme a urgência e a gravidade da situação encontrada.

Sobre os cuidados de saúde ministrados às populações, algumas outras reflexões compete aqui traçar. A primeira, para revelar a grande competência e, fundamentalmente, a extrema dedicação de todos os que connosco trabalharam, com parcos meios à sua disposição, com pessoal desprovido de formação, com largas de dezenas de consultas e tratamentos diários, com situações clínicas invulgares em muitos casos para abordarem. Eles foram, no seu ofício, heróis assumidos desta guerra particular.

A segunda nota é para descrever, em poucas palavras, situações vividas no terreno para provar a nossa ligação sentimental e efectiva aquela gente, tão profunda que nunca poderíamos regatear qualquer tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que o imperativo da missão, era a solidariedade verdadeira que nos movia. Dos muitos exemplos, escolho o daquela bajuda que iria ser mãe pela primeira vez.

Cerca das 3 horas da manhã, o chefe da tabanca contacta com o quartel transmitindo a necessidade de apoio médico à dita bajuda que, com o passar das horas, não dava sossego nem tranquilidade na tabanca. De imediato um camarada de serviço de segurança ao quartel foi ao abrigo subterrâneo à procura do primeiro que estivesse à mão para dar apoio e resolver a situação. Escusado será dizer a azáfama do pessoal dos serviços de saúde perante aquele caso que nunca se nos tinha deparado.

Após uma mini-reunião prestou-se-lhe os primeiros socorros e tomou-se a medida adequada, que era evacuação para Bissau para o Hospital Civil. Assim, e de imediato, a bajuda foi colocada no primeiro veículo à mão (por acaso o jipe cedido pelo Capitão Medina e Matos) e lá foi na companhia de um enfermeiro, um homem de transmissões e um atirador de metralhadora.

Estrada fora, lá foram os nossos camaradas, com as luzes do veículo nos máximos, num acto de desprezo pelo adversário, a todo o gás, direitos a João Landim, com o homem das transmissões a contactar com os fuzas para nos proporcionarem àquela hora a disponibilidade da jangada para fazermos a travessia rumo a Bissau. Cerca das 5 horas da manhã, esta malta dava entrada com a bajuda no hospital e, enquanto no guichet de atendimento entregávamos a papelada para tratamento de dados, ela seria mãe de um rapagão a quem foi dado o nome Mamadú Baldé.

2 – As gentes africanas de Có e subúrbios eram inconfundíveis: de grande estatura e carisma, eram irmãos de sangue e de luta pela mesma causa. Enaltecer os seus predicados seria esgotar toda uma panóplia de adjectivos. Por muito que o tentasse nesta singela crónica, não teria palavras para o fazer.

Naturalmente simpáticos, empenhados, compreensivos e sensíveis a todos os nossos argumentos, entre eles e nós havia uma empatia total, uma identificação absoluta em torno de todo o tipo de problemas desde os operacionais até aos da vivência da tabanca. Tudo se processava entre nós num perfeito sincronismo e entendimento, franco, despido de preconceitos.
Era muito fácil conviver com esta gente. Isto para dizer que, após todas as prestações de consultas de primeiros socorros, a tenda da enfermaria mais parecia um aviário de frangos e galinhas ofertados pelos pacientes, permitindo-nos depois fazer fabulosos pitéus nos momentos mais condicionados pela fome e pelo cansaço. Recusar a oferta de galinha ao africano era ofensa impensável.

3 – No percurso operacional tivemos um comportamento modelar, na área do bem-estar e do apoio social tudo também fizemos para colmatar muitos problemas locais, quer das NT, quer da população em geral. Para o bem-estar do pessoal, ao fim de pouco tempo, construímos um novo conjunto de cozinha, refeitório e cantina/bar para as praças.

Construímos ainda um espaçoso e seguro paiol subterrâneo para as centenas de granadas que jaziam praticamente a céu aberto, um sistema de filtragem de águas para beber e para banhos, uma oficina auto com fossa para lavagem e lubrificação de viaturas, com água corrente, para os nossos Unimog - para os grandes Furriel Marques e Teodoro Simões ( Nanza) nos proporcionarem transporte seguro -, um heliporto para evacuação de feridos e doentes para a capital Bissau, um sugestivo e elegante monumento alusivo à nossa passagem pela aquela terra, evocando os nossos mortos brancos e africanos. O qual, mais de trinta anos depois, ainda se mantém incólume e erecto conforme me relatou o Capitão do PAIGC Eduardo Sanhá que veio, após o final de guerra colonial, cursar Direito na Universidade de Coimbra.

Capinámos os principais troços das estradas envolventes ao destacamento de Có, reparámos aquelas mais necessitadas, construímos ou melhorámos pontes e pontões. Em relação à população africana, dadas as condicionantes da guerra envolvente que limitavam, por razões de segurança, as áreas agrícolas aproveitáveis, disponibilizávamos meios pessoais e viaturas para os enquadrar nas suas safras diárias, permitindo assim uma actividade agrícola e pecuária razoavelmente normal e produtiva.

Para salvaguarda do bem-estar e equilíbrio emocional do pessoal, junto ao improvisado estaleiro de apoio da brigada de engenharia, para a feitura da estrada Có – Pelundo construímos um campo para a prática do futebol, fenómeno universal e abrangente, que servia às mil maravilhas para descomprimir, sendo a sua utilização diária. Largas e longas tardes dedicámos ao jogo da bola.

Ampliamos a tabanca de Có com habitações construídas com uma espécie de argamassa feita de barro e capim seco com cobertura a colmo de palmeira ou chapa de zinco, made in U.S.A., à porta das quais se plantaram duas bananeiras, sinal vivo de África.

Todos estes tipos de apoio às populações autóctones - que em guerra clássica de guerrilha como era aquela é absolutamente fundamental e constante em todos os manuais que tratam o assunto -, eram feitos por nós não só com esse intuito. A nossa ligação sentimental a essa gente era tão profunda, que nunca poderíamos regatear qualquer tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que os imperativos da missão, era a solidariedade que nos movia.

(Continua)

____

(1) vd posts anteriores do João Varanda:

15 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Cupilom...


16 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"...

Guiné 63/74 - CCCXIV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (3): O espírito de grupo

Guiné > Região do Cacheu > Có > 1969: As lavadeiras da tropa, na bolanha de Có.


© João Varanda (2005)



Texto do João Varanda (ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636).




História da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) > 3ª parte.



Na Guiné, exceptuando o arquipélago de Bijagós (sem interesse militar), o terreno define duas zonas militarmente diferenciadas:

(i) O litoral – da costa até uma linha definida de norte para sul por Cuntima, Jumbembem, Porto Gole, Xime, Xitole eAldeia Formosa;

(ii) O interior – para leste da linha anterior até às fronteiras com o Senegal e a Guiné – Conacri.

Contudo, durante a guerra quer os comandos militares portugueses, quer o PAIGC dividiram o território em três zonas, separando o litoral em Norte e Sul do rio Geba.

A divisão da Guiné em zonas de operações obedeceu à compartimentação do terreno, mas teve em consideração as importantes clivagens étnicas e religiosas dos grupos humanos da Guiné e os apoios que os países vizinhos deram à luta militar.

Foram assim estabelecidas três zonas de Operações:

(i) Zona Norte: São Domingos (fronteira), Farim, Teixeira Pinto (Canchungo), Óio / Moirés, Bissau.

(ii) Zona Sul: Fulacunda (Quinara), Cubisseco, Catió / Cantanhez, Quitafine, fronteira.

(iii) Zona Leste: Bafatá, Gabu (Nova Lamego), Madina, fronteira norte (Pirada), fronteira leste (Buruntuma).

Assim, e perante este quadro, verifica-se o que foi a imensa saga do combate na Guiné – hoje historicamente reconhecida como “o Vietname Português” – no contexto da complexidade, diversidade e riqueza étnicas de uma comunidade como aquela.

Có – e conforme vimos pelo teatro das operações antes da nossa chegada para tampão de zona - foi terra fustigada; no terreno, travava-se então lutas que pareciam eternas, mas a moral da CCAÇ 2636 era muito elevada, já que com os nossos comandos, na pessoa do jovem Capitão Miliciano Manuel Medina Mato e do 2º. Sargento Cruz, em pleno mato, às portas do combate do dia a dia, sentimos sempre o prodígio do apoio dos escalões superiores, traduzido em todas as valências, com oportunidade e eficácia.

Tivemos o privilégio de servir na Guiné na CCAÇ 2636, no período de 28 de Outubro de 1969 a 6 de Setembro de 1971. Foi uma unidade de que guardamos as melhores recordações, a de ter cumprido as suas difíceis e diversificadas missões, com eficiência, dignidade, correcta postura no ambiente político-militar da época. Esse saetimento era partilhado por todos os seus efectivos, continentais, insulares (Açores) ou do recrutamento local.

Foi uma companhia bem comandada por um jovem capitão de infantaria no início da sua carreira, que revelou possuir uma generosidade e dedicação exemplares e uma capacidade de compreensão do conflito, não apenas na sua vertente militar, mas sobretudo nos seus aspectos político-sociais, humanos e psicológicos, aqueles que sem dúvida constituíam a componente nuclear da Guerra da Guiné e condicionaram os desenvolvimentos da situação, os sucessos e os insucessos da luta armada até ao desfecho que se conhece.

Os factos mais salientes revelam-se com a recordação e narrativa de pequenas histórias nas quais os traços militares não relegam para segundo plano os aspectos humanos, as emoções, as alegrias e tristezas, as frustações e os receios que todos os que serviram o País nas Guerras de África bem conhecem e compreendem em toda a profundidade e a quem a leitura destas crónicas reconfortará, lembrará bons e maus momentos e ajudará a uma melhor compreensão dos acontecimentos de que foram protagonistas.

Sublinho, para elogiar, a importância que para nós foi a acção de todo o colectivo militar e o recrutamento local (Milícias ) que formaram o todo da CCAÇ 2636. Alguns deram a sua vida para a paz no Chão Manjaco , chão esse que sentimos e defendemos com inegualável coragem e em plena liberdade de consciência. Sem constrangimentos, obsessões, cedências, estivemos sempre por inteiro com muito ânimo e vontade, mesmo que, a cada dia que passava, a guerra fosse ganhando contornos cada vez mais sérios e cenários que se estendiam cada vez mais no tempo e no espaço.

Com o passar do tempo as hipóteses de tudo ser transitório, passageiro, fácil de gerir, eram cada vez mais distantes e o conflito encaminhava-se para uma situação duradoira, de difícil solução, tanto a nível interno como a nível externo. Não cabe agora e aqui tecer comentários sobre os seus antecedentes, causas e razões que a motivaram, nem tão pouco comentar a sua legitimidade, sob qualquer das suas vertentes mais críticas. Hoje o assunto, por muito debatido e assumido, está fora de discussão.

Confrontados com estas duras realidades, houve que enfrentar os acontecimentos, preparar a guerra, fazer a guerra, com todas as suas incidências. E essa guerra era e foi uma guerra de verdade. Para que a história , a nossa, não o esqueça, deixo uma segunda e não menos relevante palavra de apreço e justificação para os homens da CCAÇ 2636. Não só por eles ou para eles.
Mas porque eles simbolizaram de forma admirável todo o espírito de sacrifício, dedicação e entrega a que toda uma Nação em armas se votou em torno desta guerra. Foram eles que permitiram colher todo este manancial de experiência viva e rica, protagonizando momentos de indescritível beleza, sofrimento, angústia e coragem física e moral, que só um ambiente desta natureza pode exprimir e permitir. Sem reivindicações, subterfúgios, queixumes. Ao nível de verdadeiros heróis, anónimos, simples descomplexados, humildes, mas muito verdadeiros e humanos. Do melhor que temos.

Formámos sempre e em todas as circunstâncias um conjunto sincronizado, harmónico, sinergético, de uma vontade única e de um só querer. O Capitão Manuel Medina Matos, o 2ºs. Sargentos António Cruz e José Rosa Coelho, os Alferes José Américo Martins Ferreira, Luís Mendes, João Manuel Magalhães, e o Baltazar Silva Dias Santos, os Furriéis António Agostinho Ramos, David Rosário Monteiro, Leonel Santos Sousa Morais, Alcides Carolino Trindade, Fernando António Oliveira , José Adalberto Esteves Teles Paiva, José Silva Rodrigues Alves, Francisco Joaquim Pais, Francisco José Salema, Manuel Costa Alves, António Silva Pratas, Manuel Marques, António Armando Teixeira, Diogo José Moura Proença e, eu próprio, João Varanda eram o exemplo que estimulava e convidava os nossos soldados à entrega, ao empenho e à vontade de ir mais longe, permitindo-se avançarmos, mais seguros e confiantes.

Era este o espírito de entrega, de verdadeira missão, que se estendia muito mais para além do soldado combatente. Todos os restantes, que não tinham sido escalados para esta tarefa sublime sentiam, tinham tanto como os outros o direito e a obrigação de tudo fazerem e conseguirem, na retaguarda competente, para apoiarem o sacrifício, solidarizando-se com os operacionais, trabalhando com eles e para eles, sofrendo por vezes as mesmas angústias, os mesmos temores.

Em redor de toda esta vivência, é justo sublinhar, e de forma acentuada, o labor desenvolvido por todos os que nos acompanharam nas incidências do mato, do combate. Eles não só nos acrescentaram experiência e saber às nossas arremetidas, mas constituíram também verdadeiros exemplos de abnegação e heroísmo.

Ainda no terreno concreto da luta umas breves palavras para enaltecer todos os que acreditaram na “Guiné Melhor” ao nosso lado: às Milícias que acreditam nos Portugueses, o comportamento das populações e autoridades que connosco partilharam as agruras da comissão, populações nativas e brancas porque estiveram sempre ao nosso lado, por razões eventualmente diversas, talvez, mas com o mesmo acolhimento e apoio.

Todos tinham também uma crença inabalável nos nossos feitos, nos destinos da guerra em curso, na conquista do bem – estar para todos. Sempre e em todas as circunstâncias manifestavam o seu júbilo pelas conquistas realizadas, o seu pesar pelos inêxitos, repartindo com todos nós momentos de grande satisfação e admiração. Construíram em nosso redor um ambiente de elevada estima, reconfortante e estimulante, permitindo-nos fazer esquecer as ansiedades próprias no contexto em que ali nos encontrávamos. Foram a nossa família afastada, neles encontrámos força e ânimo para prosseguir, teimar, lutar e mantermo-nos fieis ao compromisso histórico então travado.

As autoridades locais, com quem tivemos o ensejo de contactar e conviver, foram também exemplares na compreensão da sua e da nossa missão, contribuindo de modo muito significativo para um natural e necessário ambiente de bom entendimento. Sem constrangimentos de qualquer espécie, com ligações funcionais excelentes, o seu contributo para o êxito dos nossos propósitos foi decisivo.

Por isso, toda esta gente, nos seus sectores de actuação e de representação, não poderia deixar de ser citada com muito orgulho e estima da CCAÇ 2636.

Guiné 63/74 - CCCXIV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (3): O espírito de grupo

Guiné > Região do Cacheu > Có > 1969: As lavadeiras da tropa, na bolanha de Có.


© João Varanda (2005)



Texto do João Varanda (ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636).




História da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) > 3ª parte.



Na Guiné, exceptuando o arquipélago de Bijagós (sem interesse militar), o terreno define duas zonas militarmente diferenciadas:

(i) O litoral – da costa até uma linha definida de norte para sul por Cuntima, Jumbembem, Porto Gole, Xime, Xitole eAldeia Formosa;

(ii) O interior – para leste da linha anterior até às fronteiras com o Senegal e a Guiné – Conacri.

Contudo, durante a guerra quer os comandos militares portugueses, quer o PAIGC dividiram o território em três zonas, separando o litoral em Norte e Sul do rio Geba.

A divisão da Guiné em zonas de operações obedeceu à compartimentação do terreno, mas teve em consideração as importantes clivagens étnicas e religiosas dos grupos humanos da Guiné e os apoios que os países vizinhos deram à luta militar.

Foram assim estabelecidas três zonas de Operações:

(i) Zona Norte: São Domingos (fronteira), Farim, Teixeira Pinto (Canchungo), Óio / Moirés, Bissau.

(ii) Zona Sul: Fulacunda (Quinara), Cubisseco, Catió / Cantanhez, Quitafine, fronteira.

(iii) Zona Leste: Bafatá, Gabu (Nova Lamego), Madina, fronteira norte (Pirada), fronteira leste (Buruntuma).

Assim, e perante este quadro, verifica-se o que foi a imensa saga do combate na Guiné – hoje historicamente reconhecida como “o Vietname Português” – no contexto da complexidade, diversidade e riqueza étnicas de uma comunidade como aquela.

Có – e conforme vimos pelo teatro das operações antes da nossa chegada para tampão de zona - foi terra fustigada; no terreno, travava-se então lutas que pareciam eternas, mas a moral da CCAÇ 2636 era muito elevada, já que com os nossos comandos, na pessoa do jovem Capitão Miliciano Manuel Medina Mato e do 2º. Sargento Cruz, em pleno mato, às portas do combate do dia a dia, sentimos sempre o prodígio do apoio dos escalões superiores, traduzido em todas as valências, com oportunidade e eficácia.

Tivemos o privilégio de servir na Guiné na CCAÇ 2636, no período de 28 de Outubro de 1969 a 6 de Setembro de 1971. Foi uma unidade de que guardamos as melhores recordações, a de ter cumprido as suas difíceis e diversificadas missões, com eficiência, dignidade, correcta postura no ambiente político-militar da época. Esse saetimento era partilhado por todos os seus efectivos, continentais, insulares (Açores) ou do recrutamento local.

Foi uma companhia bem comandada por um jovem capitão de infantaria no início da sua carreira, que revelou possuir uma generosidade e dedicação exemplares e uma capacidade de compreensão do conflito, não apenas na sua vertente militar, mas sobretudo nos seus aspectos político-sociais, humanos e psicológicos, aqueles que sem dúvida constituíam a componente nuclear da Guerra da Guiné e condicionaram os desenvolvimentos da situação, os sucessos e os insucessos da luta armada até ao desfecho que se conhece.

Os factos mais salientes revelam-se com a recordação e narrativa de pequenas histórias nas quais os traços militares não relegam para segundo plano os aspectos humanos, as emoções, as alegrias e tristezas, as frustações e os receios que todos os que serviram o País nas Guerras de África bem conhecem e compreendem em toda a profundidade e a quem a leitura destas crónicas reconfortará, lembrará bons e maus momentos e ajudará a uma melhor compreensão dos acontecimentos de que foram protagonistas.

Sublinho, para elogiar, a importância que para nós foi a acção de todo o colectivo militar e o recrutamento local (Milícias ) que formaram o todo da CCAÇ 2636. Alguns deram a sua vida para a paz no Chão Manjaco , chão esse que sentimos e defendemos com inegualável coragem e em plena liberdade de consciência. Sem constrangimentos, obsessões, cedências, estivemos sempre por inteiro com muito ânimo e vontade, mesmo que, a cada dia que passava, a guerra fosse ganhando contornos cada vez mais sérios e cenários que se estendiam cada vez mais no tempo e no espaço.

Com o passar do tempo as hipóteses de tudo ser transitório, passageiro, fácil de gerir, eram cada vez mais distantes e o conflito encaminhava-se para uma situação duradoira, de difícil solução, tanto a nível interno como a nível externo. Não cabe agora e aqui tecer comentários sobre os seus antecedentes, causas e razões que a motivaram, nem tão pouco comentar a sua legitimidade, sob qualquer das suas vertentes mais críticas. Hoje o assunto, por muito debatido e assumido, está fora de discussão.

Confrontados com estas duras realidades, houve que enfrentar os acontecimentos, preparar a guerra, fazer a guerra, com todas as suas incidências. E essa guerra era e foi uma guerra de verdade. Para que a história , a nossa, não o esqueça, deixo uma segunda e não menos relevante palavra de apreço e justificação para os homens da CCAÇ 2636. Não só por eles ou para eles.
Mas porque eles simbolizaram de forma admirável todo o espírito de sacrifício, dedicação e entrega a que toda uma Nação em armas se votou em torno desta guerra. Foram eles que permitiram colher todo este manancial de experiência viva e rica, protagonizando momentos de indescritível beleza, sofrimento, angústia e coragem física e moral, que só um ambiente desta natureza pode exprimir e permitir. Sem reivindicações, subterfúgios, queixumes. Ao nível de verdadeiros heróis, anónimos, simples descomplexados, humildes, mas muito verdadeiros e humanos. Do melhor que temos.

Formámos sempre e em todas as circunstâncias um conjunto sincronizado, harmónico, sinergético, de uma vontade única e de um só querer. O Capitão Manuel Medina Matos, o 2ºs. Sargentos António Cruz e José Rosa Coelho, os Alferes José Américo Martins Ferreira, Luís Mendes, João Manuel Magalhães, e o Baltazar Silva Dias Santos, os Furriéis António Agostinho Ramos, David Rosário Monteiro, Leonel Santos Sousa Morais, Alcides Carolino Trindade, Fernando António Oliveira , José Adalberto Esteves Teles Paiva, José Silva Rodrigues Alves, Francisco Joaquim Pais, Francisco José Salema, Manuel Costa Alves, António Silva Pratas, Manuel Marques, António Armando Teixeira, Diogo José Moura Proença e, eu próprio, João Varanda eram o exemplo que estimulava e convidava os nossos soldados à entrega, ao empenho e à vontade de ir mais longe, permitindo-se avançarmos, mais seguros e confiantes.

Era este o espírito de entrega, de verdadeira missão, que se estendia muito mais para além do soldado combatente. Todos os restantes, que não tinham sido escalados para esta tarefa sublime sentiam, tinham tanto como os outros o direito e a obrigação de tudo fazerem e conseguirem, na retaguarda competente, para apoiarem o sacrifício, solidarizando-se com os operacionais, trabalhando com eles e para eles, sofrendo por vezes as mesmas angústias, os mesmos temores.

Em redor de toda esta vivência, é justo sublinhar, e de forma acentuada, o labor desenvolvido por todos os que nos acompanharam nas incidências do mato, do combate. Eles não só nos acrescentaram experiência e saber às nossas arremetidas, mas constituíram também verdadeiros exemplos de abnegação e heroísmo.

Ainda no terreno concreto da luta umas breves palavras para enaltecer todos os que acreditaram na “Guiné Melhor” ao nosso lado: às Milícias que acreditam nos Portugueses, o comportamento das populações e autoridades que connosco partilharam as agruras da comissão, populações nativas e brancas porque estiveram sempre ao nosso lado, por razões eventualmente diversas, talvez, mas com o mesmo acolhimento e apoio.

Todos tinham também uma crença inabalável nos nossos feitos, nos destinos da guerra em curso, na conquista do bem – estar para todos. Sempre e em todas as circunstâncias manifestavam o seu júbilo pelas conquistas realizadas, o seu pesar pelos inêxitos, repartindo com todos nós momentos de grande satisfação e admiração. Construíram em nosso redor um ambiente de elevada estima, reconfortante e estimulante, permitindo-nos fazer esquecer as ansiedades próprias no contexto em que ali nos encontrávamos. Foram a nossa família afastada, neles encontrámos força e ânimo para prosseguir, teimar, lutar e mantermo-nos fieis ao compromisso histórico então travado.

As autoridades locais, com quem tivemos o ensejo de contactar e conviver, foram também exemplares na compreensão da sua e da nossa missão, contribuindo de modo muito significativo para um natural e necessário ambiente de bom entendimento. Sem constrangimentos de qualquer espécie, com ligações funcionais excelentes, o seu contributo para o êxito dos nossos propósitos foi decisivo.

Por isso, toda esta gente, nos seus sectores de actuação e de representação, não poderia deixar de ser citada com muito orgulho e estima da CCAÇ 2636.

Guiné 63/74 - CCCXIII: A morte de três majores e de um alferes no chão manjaco

Post nº 313 (CCCXIII)




João Varanda, no destacamento de Tel, na zona de Có-Pelundo, em pleno chão manjaco, região do Cacheu, 1969.

A CCAÇ 2636, uma companhia açoreana, fez na primeira parte da sua comissão a segurança à construção da estrada Có- Pelundo - Teixeira Pinto.

A 14 de Novembro de 1969 um grupo de combate da CCAÇ 2636 foi destacado para Tel.

© João Varanda (2005)



Texto do João Varanda (ex-combatente da CCAÇ 2636, Có/Pelundo e Teixeira Pinto; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1969/71)

Nota introdutória:

Temos de prestar homenagem a todos quantos combateram e perderam a vida na Guiné-Bissau, tanto da parte portuguesa com da parte do PAIGC. Todos foram heróis e neste escrito sincero acrescento também o Alferes Mosca, em termos que não deixam margem para dúvida. E, ao citá-lo, presto-lhe uma homenagem e faço-lhe a reparação de uma dívida histórica, porque foi esquecido, mesmo sendo um militar notável na companhia dos três Majores - Magalhães Osório, Pereira da Silva e Passos Ramos - que não resistiram ao brutal assassinato feito pelo inimigo, o PAIGC, nas condições mais adversas, nas matas da zona de Pelundo – Teixeira Pinto (1).


MORTE DOS TRÊS MAJORES E UM ALFERES EM 20 DE ABRIL DE 1970 (2)


Em 20 de Abril de 1970, três Majores do Exército Português, acompanhados pelo Alferes Joaquim Palmeiro Mosca e seus acompanhantes, foram brutalmente assassinados na Região de Teixeira Pinto, mais precisamente em Jolmete [a norte do pelundo, juntoao Rio Cacheu].

Os Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório e o Alferes Joaquim Palmeiro Mosca morreram no decorrer daquela que é sempre a mais arriscada e aliciante de todas as actividades de um militar: trazer o inimigo para o seu lado. Estes três oficiais (Majores), prestavam serviço no Comando de Agrupamento Operacional (CAOP), com sede em Teixeira Pinto [hoje, Canchungo] (3): o primeiro como chefe do Estado Maior, o segundo como oficial de operações e o terceiro como oficial de informações; o quarto miliar, o alferes Mosca, como operacional. Os três oficiais supreioers portugueses tentavam realizar uma operação de aliciamento de comandantes e dirigentes do PAIGC na área.

A acção em que perderam a vida, mortos pelos elementos com os quais se iam encontrar, é exemplificativa do ambiente que se vivia naquele teatro de operações e do modo como ali se conduzia a guerra.

As expectativas criadas pelo General Spínola para a resolução política da guerra, com as conversações que estabeleceu com Senghor para, através dele, chegar a Amílcar Cabral, o convencimento de que a política da “Guiné Melhor” atrairia cada vez maior número de habitantes, incluindo combatentes do PAIGC, a análise que o Estado Maior de Spínola fazia das clivagens étnicas e a situação militar no terreno, ainda favorável às forças portuguesas, haviam criado o ambiente propício para acreditar que alguns elementos daquele partido poderiam abandonar as suas fileiras e aderir à nova política, o que seria um passo para mais tarde trazer Amílcar Cabral.

Estes oficiais acreditavam que isso era possível e montaram uma rede de informações para conseguir chegar até aos dirigentes do PAIGC. O Major Pereira da Silva, oficial de informações, efectuou dez reuniões com eles, o Major Passos Ramos esteve presente em seis, o Major Magalhães Osório em quatro. Os três estiveram na primeira realizada na região de Umpacaca e nas que se realizaram em Pigane, Capunga e Jolmete, onde foram mortos com o Alferes Mosca e seus acompanhantes.

O PAIGC entendeu esta operação como aquilo que ela era: uma tentativa de levar elementos seus à traição e a deserção. O PAIGC o reagiu matando os oficiais portugueses, que seguiam desarmados e sem escolta, mas o facto de os órgãos dirigentes do PAIGC terem decidido eliminá-los em vez de os fazerem prisioneiros, a fim de os apresentar como troféus, revela a insegurança em que as cúpulas do partido se sentiam perante a política conduzida por Spínola e as dúvidas sobre o seu grau de penetração, mesmo no mato com o nosso General Spínola. Ali se iniciou o diálogo mas, entretanto, mantendo nós a posição de força.

No teatro das operações, os vitoriosos da guerra éramos nós e não o PAIGC. A Op Chão Manjaco era vital para nós: era começar a puxar a ponta, contactar Senghor, os bigrupos, usar o prestígio do agrupamento operacional.

Eram quatro pedras basilares, três majores e um alferes, peças fundamentais: - um da intelligence, Perereira da Silva; um operacional, o homem que puxava os cordéis da guerra, o Major Osório; e um major de eleição, sonhador mas pragmático, o Passos Ramos; mais o operacional, o Alferes Mosca. Foram quatro homens, e peças fundamentais da política de abertura ao diálogo com o PAIGC.

De maneira nenhuma o PAIGC nos enganou na questão relativa à Op Chão Manjaco. Luís Cabral mente quando aborda esta questão. O chão manjaco foi completamente dominado por nós e a morte dos nossos três majores e do alferes uma barbaridade cometida pelo PAIGC que, reconheçamos, não tinha outra saída.

E afirmamos que ele mente porque ainda hoje não tem a coragem de dizer: “ Que não tinham outra saída senão decapitarem aqueles grandes Senhores da Guerra, que estavam a prejudicar o PAIGC “. Dizem que queriam prender o General Spínola e assassinaram quatro combatentes portugueses que foram ao encontro de chefes militares do PAIGC, completamente desarmados.

Luís Cabral, não só mente como não assume a responsabilidade do seu partido. Percebemos perfeitamente que o PAIGC, com a corda na garganta como estava, não tinha outra saída: ou decapitava o Comando do Agrupamento Operacional e dava cabo daquele, ou tinha os bigrupos do chão manjaco a combater connosco. O PAIGC foi encostado à parede e não tinha outra saída senão, que foi catastrófica para nós, porque no plano político perdemos a capacidade de diálogo com o PAIGC. O Estado Português, na pessoa do General Spínola, estava no mato em diálogo com o PAIGC. Sentados com uns três ou quatro, estiveram a conversar. As conversas eram na base de que os bigrupos do PAIGC no chão manjaco acreditavam na nossa boa fé. É de acreditar que, se tivéssemos conseguido êxito na Op Chão Manjaco, o PAIGC teria caído como um baralho de cartas.

Tal não aconteceu e, a partir do desaparecimento daquela equipa, tudo começou a correr mal para as nossas hostes.

Manuel dos Santos (Manecas), comandante de artilharia do PAIGC, diz - ainda sobre os três Majores e o Alferes Mosca portugueses - QUE quem no mato falava em nome dos bigrupos do PAIGC eram os Comandantes, André Gomes e o José Sanhé. Contudo ressalva que eles não estavam a negociar com os três Majores e o Alferes Mosca.

O que aconteceu foi que os Majores e o Alferes Mosca iniciaram uma acção, que é um tipo de acção corrente em qualquer guerra, que foi a de tentar aliciar os comandantes do PAIGC na área. Chegaram à fala com eles através das populações que circulavam por ali. É evidente que, tanto eles como nós portugueses, tínhamos agentes entre alguns dos seus quadros.

Veja-se a versão do General João Almeida Bruno, que é bastante elucidativa do que foi passado e vivido no tempo. Ele diz que podia na verdade dizer-se que estávamos empatados com o PAIGC.

A primeira coisa a fazer na Guiné – Bissau era ganhar a iniciativa e, por isso concentrar meios e dispositivos. Logo também nas primeiras directivas do General Spínola percebeu-se que ter liberdade de acção, ou seja capacidade de iniciativa, era um dado essencial na guerra. Não se podia jogar à defesa: a defesa era um estado preparatório para a ofensiva.

Com Spínola concentraram-se meios, ganhámos capacidade de acção e passámos ao ataque. Porque só a ofensiva conduzia à vitória. Aumentou-se a actividade operacional para dominarmos o teatro das operações pelas armas, para que pudéssemos dialogar com o PAIGC numa posição de força.

Isto não foi querer fazer a guerra pela guerra. Paralelamente foi desencadeada uma grande acção chamada "Guiné Melhor”, uma acção de natureza política que estava a ser ensaiada e concretizada no chão manjaco. E foi aqui que se abriu o diálogo com oPAIGC e que se deu o primeiro encontro entre o Governador e Comandante - Chefe das Forças Armadas e o comandante dos bigrupos do PAIGC que actuavam naquela área. Estiveram depois em várias reuniões, não eram agentes duplos, mas faziam a circulação de informações.

E chegaram à fala, houve vários encontros, mas desde o primeiro encontro que a direcção do PAIGC tinha sido advertida pelos comandantes locais de que havia essa tentativa, mas nunca puseram de parte a negociação com Portugal para chegarmos ao fim do conflito.

Consideraram o diálogo como uma acção clássica de antiguerrilha de corrupção ou de aliciamento de responsáveis da parte adversa ao PAIGC com gravadores, com dinheiro, com géneros alimentícios, com coisas. Os gravadores eram bens de consumo que qualquer indivíduo jovem – e nós éramos todos, jovens e todos os jovens gostavam de ter. Era uma tentativa de corrupção material e de aliciamento. Tínhamos lá umas centenas de guerrilheiros, mas aquilo era sobretudo para os responsáveis da guerrilha. Houve até ordem superior do PAIGC para terminar com isso, segundo se recorda (o Manuel dos Santos).

E no último encontro dos Majores e do Alferes Mosca, os combatentes doPAIGC tentaram capturá-los, e os nossos quatro homens tentaram defender-se. Para dar uma boa imagem diz ainda Manuel dos Santos (Manecas), que não é verdadeira a versão segundo o qual os Majores e o Alferes Mosca iam desarmados, e que Spínola ficou furioso, porque eram três oficiais com reputação de serem altamente capazes, de serem os melhores operacionais e os seus melhores adjuntos.

Já Luís Cabral é duro na análise sobre os quatro oficiais da Op Chão Manjaco e começa por dizer que Spínola não os conhecia e diz mais que o comandante da região, André Gomes, soube da situação que a tropa portuguesa queria negociar a rendição de tropas do PAIGC afirma esses oficiais acabaram por ser mortos, e que eles tiveram essa informação e souberam mobilizar os homens a leste, através de elementos da população que frequentavam os dois lados.

Eles começaram a fazer a aproximação, depois começaram a aceitar que lhes levassem coisas para lá e começaram eles a mandar também coisas para nós, então o comandante André Gomes resolveu fazer o jogo duplo, após ter sido posto ao corrente da situação. Aceitaram todas as prendas, todas as coisas, deram tudo, recebiam os homens desarmados e iam desarmados e combinaram o dia da rendição das tropas do PAIGC. Tudo ficou combinado e acertado na estrada do Cacheu – Teixeira Pinto, com o General Spínola.

Mas a traição foi grande. Luís Cabral nessa altura mandou para lá os seus principais responsáveis, Luís Correia (Responsável da Segurança Norte), Quintino Vieira (Responsável pela Segurança da Região) e André Gomes (Membro do Comité Executivo do Partido P.A.I.G.C.). Contudo já havia vários combatentes que não estavam a gostar daqueles contactos.

Quando o Luís Correia chegou lá, os interlocutores dos oficiais portugueses disseram: “ Nós temos que dizer a eles, que tu já chegaste, porque eles vão saber a certeza, portanto se não formos nós a dizer, vão pensar que há qualquer coisa nisto tudo “. E então era preciso ter mais cuidado, mais prudência, porque tinha chegado o Homem da Segurança Norte.

Quando se encontraram com o General Spínola, nessa estrada, disseram-lhe que esse Responsável da Segurança tinha vindo ali à região de Teixeira Pinto, para fazer uma cerimónia ali ao Deus da área, que é o Irã da Coboiana, o grande Deus da floresta. Mas ele para fazer essa cerimónia precisava de aguardente de cana.

Era preciso arranjar-lha o mais depressa possível que ele, fazendo a cerimónia ia-se embora. Então, o General Spínola mandou comprar aguardente de cana e deu-a à malta para a cerimónia.

Havia um aspecto de desprezo pelos ideais do PAIGC, de tal maneira que pensavam ser possível com uma garrafa de uísque, até mesmo com uns brincos, desviar aqueles homens dos seus ideais de libertação e de independência. Os nossos oficiais acabaram por ser mortos porque foram lá para assistir à rendição das tropas do PAIGC. Foi feita uma emboscada e foram mortos.

O acontecido, segundo Luís Cabral, não estava nos planos do PAIGC. Afirma que o plano era prender o General Spínola, mas contudo a malta do PAIGC convenceu-se que o General Spínola não vinha ao acto. Como naquela área não tínhamos abastecimentos regulares, nem coisas para conservar esses oficiais, estavam quilhados, ou apanhavam o General Spínola ou então não saia ninguém dali.

Este depoimento foi datado de 13 de Janeiro de 1995, Luís Cabral vivia em Portugal, foi derrubado em 1979 por um golpe de Estado chefiado por Nino Vieira.

Veja-se o depoimento de Marcelino da Mata, alferes do quadro permanente do exército português, reformado, depoiimento feito em em Lisboa, em 21 de Julho de 1994. Marcelino da Mata fez denodadamente a guerra, partindo da noção de quem tinha medo morria depressa e movimentava-se à vontade no complexo território da Guiné – Bissau. Disse o Alferes Marcelino da Mata: os três Majores e o Alferes iam lá buscar o armamento e mais que todas as noites eles iam lá e os homens do PAIGC traziam armas e entregavam-nas ao nosso exército.

Naquele dia foram lá, estavam à espera de um grupo que vinha entregar material, mas em vez de material encontraram o grupo de André Gomes, que tinha vindo a Jolmete fazer patrulha e que, sem saberem o que é que se passava, mataram-no. Depois de o André Gomes matar os quatro oficiais, o exército português avançou com a guerra.

O Marcelino da Mata e o seu grupo operacional andou quatro dias a seguir as pegadas do André Gomes, acabou com o acampamento deles, mas não apanhou o André Gomes. Havia um rio, o Cacheu, e eles quando se viam apertados pegavam nas pirogas atracadas na orla da mata e fugiam.

Carlos Fabião diz que, entre as variadíssimas hipóteses para o caso dos Majores e do Alferes, ele disse a dele, o que não quer dizer que seja a verdadeira. Não estava na Guiné – Bissau quando foi o problema da morte dos nossos oficiais, mas entendia o que passou.

O PAIGC apercebeu-se de que precisava de tempo para se rearmar, reequipar conseguir arranjar-se no chão manjaco. Então começou a negociar a missão connosco. Penso que, desde o princípio, houve falsidade nos propósitos do PAIGC, porque eles só queriam ganhar tempo. Aquela reunião iria ser a última, em termos operacionais, porque eles já tinham prometido várias vezes a sua rendição e nunca se tinham rendido. Eles iam reunir-se com o PAIGC mas esses encontros eram vulgares. O General Spínola tinha estado em alguns.

O PAIGC ficava sempre em estudar as formas de rendição, mas no momento em que iam fazer a rendição falhava outra vez. Este grupo foi dizer-lhes que era a última conversa que iam ter. Pensa Carlos Fabião que era a última conversa que iam ter os homens do PAIGC. Assassinaram-nos nessa altura.

Em resumo, a propósito desta missão levada a cabo por este grupo restrito de oficiais, eles foram vitimas da sua generosidade e vontade de bem servir, acabaram por encontrar a morte na Guiné – Bissau, atraídos à vil emboscada, sob a direcção do Major Passos Ramos, talvez o oficial mais distinto e brilhante que a sua geração conheceu. Conseguiram estabelecer estreitos contactos com uma fracção muito importante dos combatentes do PAIGC, convencendo-os a abandonar a luta armada contra Portugal e serem integrados no seu exército. Foram brutalmente assassinados quando, completamente desarmados, se preparavam para a última reunião que antecedia a apresentação no Pelundo, das forças da região militar norte do PAIGC que estavam sob as ordens de Aliu Gomes.

Na estrada que liga aquela povoação ao Jolmete foram os seus corpos esquartejados e foram recolhidos pela Companhia de Caçadores nº 2586, do Batalhão de Caçadores nº 2884, comandado pelo Tenente - Coronel de Infantaria Romão Loureiro. Paz às almas destes valorosos filhos da Nação Portuguesa, cujos locais de sepultura se indicam a seguir:

- Major de Infantaria Nº. 50972511, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Alberto Fernão Magalhães Osório: Cemitério Paroquial do Baraçal, Celorico da Beira;

- Major de Artilharia Nº. 50692711, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Joaquim Pereira da Silva: Cemitério Paroquial de Galegos, Penafiel;

- Major de Artilharia com o C.E.M. Nº. 50275711, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Raul Ernesto Mesquita da Costa Passos Ramos: Cemitério Paroquial de Paranhos, Porto;

- Alferes Miliciano de Infantaria Nº. 19516168, do Pelotão de Caçadores Nativos Nº. 59 / CTIG, Joaquim João Palmeiro Mosca , Cemitério Municipal de Redondo, Redondo.

Deixo-lhes um fraterno abraço e um apelo a todos os ex-combatentes para que visitem estes cemitérios e coloquem nas suas campas um cravo vermelho de Abril.

João Varanda

_______

Notas de L.G.

(1) vd. post de 11 de Agosto > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo) [Texto de João Tunes]

(2) Felicito o João Varanda por este texto sobre a morte dos três majores e do alferes do Pel Caç Nat 59, na sequência da Op Chão Manjaco, em que Spínola depositou tantas esperanças de inverter o curso dos acontecimentos... Presumo que ele tenha feitas várias pesquisas documentais sobre estas mortes que nos tocaram a todos naquele tempo. Ele, porém, não cita as fontes que consultou. Seria bom citar essas fontes, fornecendo uma pequena bibliografia... Muitos dos nossos amigos e camaradas de tertúlia sabem pouco ou nada sobre este assunto (já aqui abordado pelo João Tunes, num depoimento emocionado, já que ele era amigo dos três majores, que conheceu em Teixeira Pinto) (1).

(3) Vd. post de Afonso Sousa, de 25 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXI: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)

Guiné 63/74 - CCCXIII: A morte de três majores e de um alferes no chão manjaco

Post nº 313 (CCCXIII)




João Varanda, no destacamento de Tel, na zona de Có-Pelundo, em pleno chão manjaco, região do Cacheu, 1969.

A CCAÇ 2636, uma companhia açoreana, fez na primeira parte da sua comissão a segurança à construção da estrada Có- Pelundo - Teixeira Pinto.

A 14 de Novembro de 1969 um grupo de combate da CCAÇ 2636 foi destacado para Tel.

© João Varanda (2005)



Texto do João Varanda (ex-combatente da CCAÇ 2636, Có/Pelundo e Teixeira Pinto; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1969/71)

Nota introdutória:

Temos de prestar homenagem a todos quantos combateram e perderam a vida na Guiné-Bissau, tanto da parte portuguesa com da parte do PAIGC. Todos foram heróis e neste escrito sincero acrescento também o Alferes Mosca, em termos que não deixam margem para dúvida. E, ao citá-lo, presto-lhe uma homenagem e faço-lhe a reparação de uma dívida histórica, porque foi esquecido, mesmo sendo um militar notável na companhia dos três Majores - Magalhães Osório, Pereira da Silva e Passos Ramos - que não resistiram ao brutal assassinato feito pelo inimigo, o PAIGC, nas condições mais adversas, nas matas da zona de Pelundo – Teixeira Pinto (1).


MORTE DOS TRÊS MAJORES E UM ALFERES EM 20 DE ABRIL DE 1970 (2)


Em 20 de Abril de 1970, três Majores do Exército Português, acompanhados pelo Alferes Joaquim Palmeiro Mosca e seus acompanhantes, foram brutalmente assassinados na Região de Teixeira Pinto, mais precisamente em Jolmete [a norte do pelundo, juntoao Rio Cacheu].

Os Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório e o Alferes Joaquim Palmeiro Mosca morreram no decorrer daquela que é sempre a mais arriscada e aliciante de todas as actividades de um militar: trazer o inimigo para o seu lado. Estes três oficiais (Majores), prestavam serviço no Comando de Agrupamento Operacional (CAOP), com sede em Teixeira Pinto [hoje, Canchungo] (3): o primeiro como chefe do Estado Maior, o segundo como oficial de operações e o terceiro como oficial de informações; o quarto miliar, o alferes Mosca, como operacional. Os três oficiais supreioers portugueses tentavam realizar uma operação de aliciamento de comandantes e dirigentes do PAIGC na área.

A acção em que perderam a vida, mortos pelos elementos com os quais se iam encontrar, é exemplificativa do ambiente que se vivia naquele teatro de operações e do modo como ali se conduzia a guerra.

As expectativas criadas pelo General Spínola para a resolução política da guerra, com as conversações que estabeleceu com Senghor para, através dele, chegar a Amílcar Cabral, o convencimento de que a política da “Guiné Melhor” atrairia cada vez maior número de habitantes, incluindo combatentes do PAIGC, a análise que o Estado Maior de Spínola fazia das clivagens étnicas e a situação militar no terreno, ainda favorável às forças portuguesas, haviam criado o ambiente propício para acreditar que alguns elementos daquele partido poderiam abandonar as suas fileiras e aderir à nova política, o que seria um passo para mais tarde trazer Amílcar Cabral.

Estes oficiais acreditavam que isso era possível e montaram uma rede de informações para conseguir chegar até aos dirigentes do PAIGC. O Major Pereira da Silva, oficial de informações, efectuou dez reuniões com eles, o Major Passos Ramos esteve presente em seis, o Major Magalhães Osório em quatro. Os três estiveram na primeira realizada na região de Umpacaca e nas que se realizaram em Pigane, Capunga e Jolmete, onde foram mortos com o Alferes Mosca e seus acompanhantes.

O PAIGC entendeu esta operação como aquilo que ela era: uma tentativa de levar elementos seus à traição e a deserção. O PAIGC o reagiu matando os oficiais portugueses, que seguiam desarmados e sem escolta, mas o facto de os órgãos dirigentes do PAIGC terem decidido eliminá-los em vez de os fazerem prisioneiros, a fim de os apresentar como troféus, revela a insegurança em que as cúpulas do partido se sentiam perante a política conduzida por Spínola e as dúvidas sobre o seu grau de penetração, mesmo no mato com o nosso General Spínola. Ali se iniciou o diálogo mas, entretanto, mantendo nós a posição de força.

No teatro das operações, os vitoriosos da guerra éramos nós e não o PAIGC. A Op Chão Manjaco era vital para nós: era começar a puxar a ponta, contactar Senghor, os bigrupos, usar o prestígio do agrupamento operacional.

Eram quatro pedras basilares, três majores e um alferes, peças fundamentais: - um da intelligence, Perereira da Silva; um operacional, o homem que puxava os cordéis da guerra, o Major Osório; e um major de eleição, sonhador mas pragmático, o Passos Ramos; mais o operacional, o Alferes Mosca. Foram quatro homens, e peças fundamentais da política de abertura ao diálogo com o PAIGC.

De maneira nenhuma o PAIGC nos enganou na questão relativa à Op Chão Manjaco. Luís Cabral mente quando aborda esta questão. O chão manjaco foi completamente dominado por nós e a morte dos nossos três majores e do alferes uma barbaridade cometida pelo PAIGC que, reconheçamos, não tinha outra saída.

E afirmamos que ele mente porque ainda hoje não tem a coragem de dizer: “ Que não tinham outra saída senão decapitarem aqueles grandes Senhores da Guerra, que estavam a prejudicar o PAIGC “. Dizem que queriam prender o General Spínola e assassinaram quatro combatentes portugueses que foram ao encontro de chefes militares do PAIGC, completamente desarmados.

Luís Cabral, não só mente como não assume a responsabilidade do seu partido. Percebemos perfeitamente que o PAIGC, com a corda na garganta como estava, não tinha outra saída: ou decapitava o Comando do Agrupamento Operacional e dava cabo daquele, ou tinha os bigrupos do chão manjaco a combater connosco. O PAIGC foi encostado à parede e não tinha outra saída senão, que foi catastrófica para nós, porque no plano político perdemos a capacidade de diálogo com o PAIGC. O Estado Português, na pessoa do General Spínola, estava no mato em diálogo com o PAIGC. Sentados com uns três ou quatro, estiveram a conversar. As conversas eram na base de que os bigrupos do PAIGC no chão manjaco acreditavam na nossa boa fé. É de acreditar que, se tivéssemos conseguido êxito na Op Chão Manjaco, o PAIGC teria caído como um baralho de cartas.

Tal não aconteceu e, a partir do desaparecimento daquela equipa, tudo começou a correr mal para as nossas hostes.

Manuel dos Santos (Manecas), comandante de artilharia do PAIGC, diz - ainda sobre os três Majores e o Alferes Mosca portugueses - QUE quem no mato falava em nome dos bigrupos do PAIGC eram os Comandantes, André Gomes e o José Sanhé. Contudo ressalva que eles não estavam a negociar com os três Majores e o Alferes Mosca.

O que aconteceu foi que os Majores e o Alferes Mosca iniciaram uma acção, que é um tipo de acção corrente em qualquer guerra, que foi a de tentar aliciar os comandantes do PAIGC na área. Chegaram à fala com eles através das populações que circulavam por ali. É evidente que, tanto eles como nós portugueses, tínhamos agentes entre alguns dos seus quadros.

Veja-se a versão do General João Almeida Bruno, que é bastante elucidativa do que foi passado e vivido no tempo. Ele diz que podia na verdade dizer-se que estávamos empatados com o PAIGC.

A primeira coisa a fazer na Guiné – Bissau era ganhar a iniciativa e, por isso concentrar meios e dispositivos. Logo também nas primeiras directivas do General Spínola percebeu-se que ter liberdade de acção, ou seja capacidade de iniciativa, era um dado essencial na guerra. Não se podia jogar à defesa: a defesa era um estado preparatório para a ofensiva.

Com Spínola concentraram-se meios, ganhámos capacidade de acção e passámos ao ataque. Porque só a ofensiva conduzia à vitória. Aumentou-se a actividade operacional para dominarmos o teatro das operações pelas armas, para que pudéssemos dialogar com o PAIGC numa posição de força.

Isto não foi querer fazer a guerra pela guerra. Paralelamente foi desencadeada uma grande acção chamada "Guiné Melhor”, uma acção de natureza política que estava a ser ensaiada e concretizada no chão manjaco. E foi aqui que se abriu o diálogo com oPAIGC e que se deu o primeiro encontro entre o Governador e Comandante - Chefe das Forças Armadas e o comandante dos bigrupos do PAIGC que actuavam naquela área. Estiveram depois em várias reuniões, não eram agentes duplos, mas faziam a circulação de informações.

E chegaram à fala, houve vários encontros, mas desde o primeiro encontro que a direcção do PAIGC tinha sido advertida pelos comandantes locais de que havia essa tentativa, mas nunca puseram de parte a negociação com Portugal para chegarmos ao fim do conflito.

Consideraram o diálogo como uma acção clássica de antiguerrilha de corrupção ou de aliciamento de responsáveis da parte adversa ao PAIGC com gravadores, com dinheiro, com géneros alimentícios, com coisas. Os gravadores eram bens de consumo que qualquer indivíduo jovem – e nós éramos todos, jovens e todos os jovens gostavam de ter. Era uma tentativa de corrupção material e de aliciamento. Tínhamos lá umas centenas de guerrilheiros, mas aquilo era sobretudo para os responsáveis da guerrilha. Houve até ordem superior do PAIGC para terminar com isso, segundo se recorda (o Manuel dos Santos).

E no último encontro dos Majores e do Alferes Mosca, os combatentes doPAIGC tentaram capturá-los, e os nossos quatro homens tentaram defender-se. Para dar uma boa imagem diz ainda Manuel dos Santos (Manecas), que não é verdadeira a versão segundo o qual os Majores e o Alferes Mosca iam desarmados, e que Spínola ficou furioso, porque eram três oficiais com reputação de serem altamente capazes, de serem os melhores operacionais e os seus melhores adjuntos.

Já Luís Cabral é duro na análise sobre os quatro oficiais da Op Chão Manjaco e começa por dizer que Spínola não os conhecia e diz mais que o comandante da região, André Gomes, soube da situação que a tropa portuguesa queria negociar a rendição de tropas do PAIGC afirma esses oficiais acabaram por ser mortos, e que eles tiveram essa informação e souberam mobilizar os homens a leste, através de elementos da população que frequentavam os dois lados.

Eles começaram a fazer a aproximação, depois começaram a aceitar que lhes levassem coisas para lá e começaram eles a mandar também coisas para nós, então o comandante André Gomes resolveu fazer o jogo duplo, após ter sido posto ao corrente da situação. Aceitaram todas as prendas, todas as coisas, deram tudo, recebiam os homens desarmados e iam desarmados e combinaram o dia da rendição das tropas do PAIGC. Tudo ficou combinado e acertado na estrada do Cacheu – Teixeira Pinto, com o General Spínola.

Mas a traição foi grande. Luís Cabral nessa altura mandou para lá os seus principais responsáveis, Luís Correia (Responsável da Segurança Norte), Quintino Vieira (Responsável pela Segurança da Região) e André Gomes (Membro do Comité Executivo do Partido P.A.I.G.C.). Contudo já havia vários combatentes que não estavam a gostar daqueles contactos.

Quando o Luís Correia chegou lá, os interlocutores dos oficiais portugueses disseram: “ Nós temos que dizer a eles, que tu já chegaste, porque eles vão saber a certeza, portanto se não formos nós a dizer, vão pensar que há qualquer coisa nisto tudo “. E então era preciso ter mais cuidado, mais prudência, porque tinha chegado o Homem da Segurança Norte.

Quando se encontraram com o General Spínola, nessa estrada, disseram-lhe que esse Responsável da Segurança tinha vindo ali à região de Teixeira Pinto, para fazer uma cerimónia ali ao Deus da área, que é o Irã da Coboiana, o grande Deus da floresta. Mas ele para fazer essa cerimónia precisava de aguardente de cana.

Era preciso arranjar-lha o mais depressa possível que ele, fazendo a cerimónia ia-se embora. Então, o General Spínola mandou comprar aguardente de cana e deu-a à malta para a cerimónia.

Havia um aspecto de desprezo pelos ideais do PAIGC, de tal maneira que pensavam ser possível com uma garrafa de uísque, até mesmo com uns brincos, desviar aqueles homens dos seus ideais de libertação e de independência. Os nossos oficiais acabaram por ser mortos porque foram lá para assistir à rendição das tropas do PAIGC. Foi feita uma emboscada e foram mortos.

O acontecido, segundo Luís Cabral, não estava nos planos do PAIGC. Afirma que o plano era prender o General Spínola, mas contudo a malta do PAIGC convenceu-se que o General Spínola não vinha ao acto. Como naquela área não tínhamos abastecimentos regulares, nem coisas para conservar esses oficiais, estavam quilhados, ou apanhavam o General Spínola ou então não saia ninguém dali.

Este depoimento foi datado de 13 de Janeiro de 1995, Luís Cabral vivia em Portugal, foi derrubado em 1979 por um golpe de Estado chefiado por Nino Vieira.

Veja-se o depoimento de Marcelino da Mata, alferes do quadro permanente do exército português, reformado, depoiimento feito em em Lisboa, em 21 de Julho de 1994. Marcelino da Mata fez denodadamente a guerra, partindo da noção de quem tinha medo morria depressa e movimentava-se à vontade no complexo território da Guiné – Bissau. Disse o Alferes Marcelino da Mata: os três Majores e o Alferes iam lá buscar o armamento e mais que todas as noites eles iam lá e os homens do PAIGC traziam armas e entregavam-nas ao nosso exército.

Naquele dia foram lá, estavam à espera de um grupo que vinha entregar material, mas em vez de material encontraram o grupo de André Gomes, que tinha vindo a Jolmete fazer patrulha e que, sem saberem o que é que se passava, mataram-no. Depois de o André Gomes matar os quatro oficiais, o exército português avançou com a guerra.

O Marcelino da Mata e o seu grupo operacional andou quatro dias a seguir as pegadas do André Gomes, acabou com o acampamento deles, mas não apanhou o André Gomes. Havia um rio, o Cacheu, e eles quando se viam apertados pegavam nas pirogas atracadas na orla da mata e fugiam.

Carlos Fabião diz que, entre as variadíssimas hipóteses para o caso dos Majores e do Alferes, ele disse a dele, o que não quer dizer que seja a verdadeira. Não estava na Guiné – Bissau quando foi o problema da morte dos nossos oficiais, mas entendia o que passou.

O PAIGC apercebeu-se de que precisava de tempo para se rearmar, reequipar conseguir arranjar-se no chão manjaco. Então começou a negociar a missão connosco. Penso que, desde o princípio, houve falsidade nos propósitos do PAIGC, porque eles só queriam ganhar tempo. Aquela reunião iria ser a última, em termos operacionais, porque eles já tinham prometido várias vezes a sua rendição e nunca se tinham rendido. Eles iam reunir-se com o PAIGC mas esses encontros eram vulgares. O General Spínola tinha estado em alguns.

O PAIGC ficava sempre em estudar as formas de rendição, mas no momento em que iam fazer a rendição falhava outra vez. Este grupo foi dizer-lhes que era a última conversa que iam ter. Pensa Carlos Fabião que era a última conversa que iam ter os homens do PAIGC. Assassinaram-nos nessa altura.

Em resumo, a propósito desta missão levada a cabo por este grupo restrito de oficiais, eles foram vitimas da sua generosidade e vontade de bem servir, acabaram por encontrar a morte na Guiné – Bissau, atraídos à vil emboscada, sob a direcção do Major Passos Ramos, talvez o oficial mais distinto e brilhante que a sua geração conheceu. Conseguiram estabelecer estreitos contactos com uma fracção muito importante dos combatentes do PAIGC, convencendo-os a abandonar a luta armada contra Portugal e serem integrados no seu exército. Foram brutalmente assassinados quando, completamente desarmados, se preparavam para a última reunião que antecedia a apresentação no Pelundo, das forças da região militar norte do PAIGC que estavam sob as ordens de Aliu Gomes.

Na estrada que liga aquela povoação ao Jolmete foram os seus corpos esquartejados e foram recolhidos pela Companhia de Caçadores nº 2586, do Batalhão de Caçadores nº 2884, comandado pelo Tenente - Coronel de Infantaria Romão Loureiro. Paz às almas destes valorosos filhos da Nação Portuguesa, cujos locais de sepultura se indicam a seguir:

- Major de Infantaria Nº. 50972511, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Alberto Fernão Magalhães Osório: Cemitério Paroquial do Baraçal, Celorico da Beira;

- Major de Artilharia Nº. 50692711, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Joaquim Pereira da Silva: Cemitério Paroquial de Galegos, Penafiel;

- Major de Artilharia com o C.E.M. Nº. 50275711, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Raul Ernesto Mesquita da Costa Passos Ramos: Cemitério Paroquial de Paranhos, Porto;

- Alferes Miliciano de Infantaria Nº. 19516168, do Pelotão de Caçadores Nativos Nº. 59 / CTIG, Joaquim João Palmeiro Mosca , Cemitério Municipal de Redondo, Redondo.

Deixo-lhes um fraterno abraço e um apelo a todos os ex-combatentes para que visitem estes cemitérios e coloquem nas suas campas um cravo vermelho de Abril.

João Varanda

_______

Notas de L.G.

(1) vd. post de 11 de Agosto > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo) [Texto de João Tunes]

(2) Felicito o João Varanda por este texto sobre a morte dos três majores e do alferes do Pel Caç Nat 59, na sequência da Op Chão Manjaco, em que Spínola depositou tantas esperanças de inverter o curso dos acontecimentos... Presumo que ele tenha feitas várias pesquisas documentais sobre estas mortes que nos tocaram a todos naquele tempo. Ele, porém, não cita as fontes que consultou. Seria bom citar essas fontes, fornecendo uma pequena bibliografia... Muitos dos nossos amigos e camaradas de tertúlia sabem pouco ou nada sobre este assunto (já aqui abordado pelo João Tunes, num depoimento emocionado, já que ele era amigo dos três majores, que conheceu em Teixeira Pinto) (1).

(3) Vd. post de Afonso Sousa, de 25 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXI: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)

25 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas

Quando comandou a Op Lança Afiada, algumas vezes a pé (já que o Spínola ou a Força Aérea não lhe dava um helicóptero em exclusivo para ele poder ter, a tempo inteiro, o seu PCV - Posto de Comando Voador), o coronel Hélio Felgas ia fazer 49 anos. Tinha a idade do meu pai. Talvez, por isso, é que eu fico com o coração mole, abstendo-me de fazer juízos de valor sobre o seu desempenho nesta mítica operação. Pelo relatório da operação que aqui publicámos não se fica saber quantas noites ele dormiu no mato, ao lado dos seus soldados, se é que dormiu alguma, no período que de decorreu entre 8 e 19 de Março de 1969.

Nunca fiz nenhum operação com ele, pelo que não me permito criticá-lo, como militar. Fiz uma operação com um tenente coronel, misturado com os nossos nharros, embora de um dia. Isso foi o suficiente para passarmos a ter-lhe respeito. Seu nome: Polidoro Monteiro.

Sei que alguns milicianos do nosso tempo (do meu e do Humberto) não apreciavam o então coronel Hélio Felgas, como pessoa e como militar. A mim só me interessa hoje o que ele escreveu, as suas ideias, o seu testemunho como combatente na Guiné que ele também foi, em duas comissões (1963/64 e 1968/69). O resto fica para os historiadores...

Por outro lado, como velho combatente da Guiné, ele merece o mesmo respeito que qualquer um... Ele estava num quadrante político-ideológico completamente oposto ao meu e, inclusive, defendeu ideias sobre a guerra total na Guiné que ainda hoje me horrorizam. Se algum dia ele tivesse chegado a Com-Chefe, seria tentado a "passar tudo a ferro"...

Em finais de 1968, ele estava em rota de colisão com Spínola. Como comandante da Op Lança Afiada é desautorizado e humilhado por Spínola: reveja-se o episódio das Lanchas de Desembarque no Rio Corubal... Em todo o caso deram-lhe a Torre e Espada, em 1970. Os seus amigos da ala dura do regime, pois claro. Ele faz questão de sublinhar que foi o Chefe de Estado, o Almirante Américo Thomaz, quem o condecorou no 10 de Junho de 1970.

Mas vamos ao que interessa. Eu e o Humberto Reis seleccionámos algumas partes do depoimento do nosso brigadeiro (e nosso comandante, enquanto coronel) sobre a guerra da Guiné... Recorde-se a fonte: o livro com o título "Os últimos guerreiros do império", editado pela Erasmo (Amadora, 1995). Hoje publicamos a segunda parte que é sobre as emboscadas (ele diz que sofreu 26 só na Guiné).


As emboscadas


As emboscadas eram feitas quer a colunas motorizadas quer a tropas que se deslocavam a pé Nas primeiras, a explosão de uma mina anticarro sinalizava o começo da cilada (1).

Tenho uma fotografia que mostra o que se passou logo após ter rebentado uma mina sob a roda de um Unimog dos grandes (2). A viatura ficou destruída e sofremos dois mortos e dezasseis feridos. Tirei a fotografia porque o meu jipe também passara por cima da mina sem a fazer rebentar. O lugar do condutor da primeira viatura de uma coluna motorizada era especialmente perigoso (3). Por isso, além dos sacos de terra que se amontoavam ao lado dos pedais e por baixo do assento, havia uma escala de condutores, também chamada «escala de condenados». Não raro vi o condutor de serviço a rezar, antes de a sua viatura começar a rodar à frente da coluna.

As emboscadas começavam sempre por uma rajada repentina de metralhadora. Seguia-se o característico «rasgar» das pistolas-metralhadoras, escondidas sabe-se lá onde; os tiros isolados das armas de repetição; as explosões das bazucas, dos morteiros ou das granadas de mão. Enfim, aquele inferno que poucas vezes durava mais do que uns minutos, mas parecia sempre durar horas.

Quando tudo se calava surgia a preocupação das baixas, transmitidas pelos postos-rádio dos pelotões: «Tínhamos tido baixas? Havia feridos?» . Se a contagem terminava sem novidades, nada se comparava ao optimismo dos nossos soldados, já então lançados na perseguição de fan-tasmas. Sim, porque só raramente se via quern causara toda aquela barulhenta confusão.

Mas, se alguém tivera azar, que raiva e que dor se podiam ler nos semblantes carregados dos companheiros. Não mais poderei esquecer a palidez mortal do portador do meu posto-rádio no dia da sua «estreia».

Por vezes, nas emboscadas tínhamos baixas que era necessário transportar em macas, durante quilómetros. Só quem passou por isso tem ideia do sofrimento e do cansaço que atingiam tanto as vítimas como os seus transportadores. E quando havia mortos, carregá-los às costas durante horas era um factor desmoralizante, que só acabou quando a Força Aérea passou a dispor de meios para os ir buscar (4). Os helicópteros salvaram muitas vidas devido a oportunidade da sua presença.

_____

Notas de L.G.

(1) Sobretudo nos primeiroa anos de guerra. No meu tempo (1969/71), ia um sempre um numerosa equipa de picadores, com um grupo de combate a protegê-los, a "abrir caminho"... Mesmo assim, havia minas que não eram detectadas... No tempo das chuvas, a detecção das minas tornava-se um pesadelo...

(2) Unimog 404, sendo o 411 o mais pequeno (conhecido por "burrinho").

(3) O lugar ao lado do condutor, ocupado em geral por um graduado, era também conhecido como o "lugar do morto". Era onde eu ía, em 13 de Janeiro de 1970, quando a nossa GMC deu um coice que terá durado uma eternidade (5)

(4) Nunca vi nenhum helicóptero a transportar os mortos do nosso lado.

(5) Vd. pots de 23 de Setebro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas

Quando comandou a Op Lança Afiada, algumas vezes a pé (já que o Spínola ou a Força Aérea não lhe dava um helicóptero em exclusivo para ele poder ter, a tempo inteiro, o seu PCV - Posto de Comando Voador), o coronel Hélio Felgas ia fazer 49 anos. Tinha a idade do meu pai. Talvez, por isso, é que eu fico com o coração mole, abstendo-me de fazer juízos de valor sobre o seu desempenho nesta mítica operação. Pelo relatório da operação que aqui publicámos não se fica saber quantas noites ele dormiu no mato, ao lado dos seus soldados, se é que dormiu alguma, no período que de decorreu entre 8 e 19 de Março de 1969.

Nunca fiz nenhum operação com ele, pelo que não me permito criticá-lo, como militar. Fiz uma operação com um tenente coronel, misturado com os nossos nharros, embora de um dia. Isso foi o suficiente para passarmos a ter-lhe respeito. Seu nome: Polidoro Monteiro.

Sei que alguns milicianos do nosso tempo (do meu e do Humberto) não apreciavam o então coronel Hélio Felgas, como pessoa e como militar. A mim só me interessa hoje o que ele escreveu, as suas ideias, o seu testemunho como combatente na Guiné que ele também foi, em duas comissões (1963/64 e 1968/69). O resto fica para os historiadores...

Por outro lado, como velho combatente da Guiné, ele merece o mesmo respeito que qualquer um... Ele estava num quadrante político-ideológico completamente oposto ao meu e, inclusive, defendeu ideias sobre a guerra total na Guiné que ainda hoje me horrorizam. Se algum dia ele tivesse chegado a Com-Chefe, seria tentado a "passar tudo a ferro"...

Em finais de 1968, ele estava em rota de colisão com Spínola. Como comandante da Op Lança Afiada é desautorizado e humilhado por Spínola: reveja-se o episódio das Lanchas de Desembarque no Rio Corubal... Em todo o caso deram-lhe a Torre e Espada, em 1970. Os seus amigos da ala dura do regime, pois claro. Ele faz questão de sublinhar que foi o Chefe de Estado, o Almirante Américo Thomaz, quem o condecorou no 10 de Junho de 1970.

Mas vamos ao que interessa. Eu e o Humberto Reis seleccionámos algumas partes do depoimento do nosso brigadeiro (e nosso comandante, enquanto coronel) sobre a guerra da Guiné... Recorde-se a fonte: o livro com o título "Os últimos guerreiros do império", editado pela Erasmo (Amadora, 1995). Hoje publicamos a segunda parte que é sobre as emboscadas (ele diz que sofreu 26 só na Guiné).


As emboscadas


As emboscadas eram feitas quer a colunas motorizadas quer a tropas que se deslocavam a pé Nas primeiras, a explosão de uma mina anticarro sinalizava o começo da cilada (1).

Tenho uma fotografia que mostra o que se passou logo após ter rebentado uma mina sob a roda de um Unimog dos grandes (2). A viatura ficou destruída e sofremos dois mortos e dezasseis feridos. Tirei a fotografia porque o meu jipe também passara por cima da mina sem a fazer rebentar. O lugar do condutor da primeira viatura de uma coluna motorizada era especialmente perigoso (3). Por isso, além dos sacos de terra que se amontoavam ao lado dos pedais e por baixo do assento, havia uma escala de condutores, também chamada «escala de condenados». Não raro vi o condutor de serviço a rezar, antes de a sua viatura começar a rodar à frente da coluna.

As emboscadas começavam sempre por uma rajada repentina de metralhadora. Seguia-se o característico «rasgar» das pistolas-metralhadoras, escondidas sabe-se lá onde; os tiros isolados das armas de repetição; as explosões das bazucas, dos morteiros ou das granadas de mão. Enfim, aquele inferno que poucas vezes durava mais do que uns minutos, mas parecia sempre durar horas.

Quando tudo se calava surgia a preocupação das baixas, transmitidas pelos postos-rádio dos pelotões: «Tínhamos tido baixas? Havia feridos?» . Se a contagem terminava sem novidades, nada se comparava ao optimismo dos nossos soldados, já então lançados na perseguição de fan-tasmas. Sim, porque só raramente se via quern causara toda aquela barulhenta confusão.

Mas, se alguém tivera azar, que raiva e que dor se podiam ler nos semblantes carregados dos companheiros. Não mais poderei esquecer a palidez mortal do portador do meu posto-rádio no dia da sua «estreia».

Por vezes, nas emboscadas tínhamos baixas que era necessário transportar em macas, durante quilómetros. Só quem passou por isso tem ideia do sofrimento e do cansaço que atingiam tanto as vítimas como os seus transportadores. E quando havia mortos, carregá-los às costas durante horas era um factor desmoralizante, que só acabou quando a Força Aérea passou a dispor de meios para os ir buscar (4). Os helicópteros salvaram muitas vidas devido a oportunidade da sua presença.

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Notas de L.G.

(1) Sobretudo nos primeiroa anos de guerra. No meu tempo (1969/71), ia um sempre um numerosa equipa de picadores, com um grupo de combate a protegê-los, a "abrir caminho"... Mesmo assim, havia minas que não eram detectadas... No tempo das chuvas, a detecção das minas tornava-se um pesadelo...

(2) Unimog 404, sendo o 411 o mais pequeno (conhecido por "burrinho").

(3) O lugar ao lado do condutor, ocupado em geral por um graduado, era também conhecido como o "lugar do morto". Era onde eu ía, em 13 de Janeiro de 1970, quando a nossa GMC deu um coice que terá durado uma eternidade (5)

(4) Nunca vi nenhum helicóptero a transportar os mortos do nosso lado.

(5) Vd. pots de 23 de Setebro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)

Pelundo > Dezembro de 1969 > O nosso artista ao volante do jipe MG-70-86. © João Tunes (2005).


1. Há tempos o João Tunes mandou-me umas fotos do tempo dele, no Pelundo e depois, da porrada que levou, no Catió e arredores...

Por outro laddo, apareceu-nos aí o João Varanda que esteve em Có e prometeu arranjar mais umas fotos... Daí estar a pensar em criar uma página sobre esta região Có - Pelundo - Teixeira Pinto...

Disse isso ao João, ao mesmo tempo que lhe perguntava, sem malícia, se já lhe tinha passado a branca na memória: ele que que esteve na CCS do Batalhão, sediado no Pelundo, não sabe ou quer lembrar-se do númerro do raio do batalhão... Ele lá tem as suas razões que a tertúlia respeita...

Perguntei-lhe também se o João Varanda, de Coimbra, já lhe tinha respondido. Eis aqui a mensagem do nosso querido, frontal e sempre bem-vindo João Tunes, autor do blogue Água Lisa (4). (cuja visita regular eu recomendo aos nossos amigos e camaradas de tertúlia).

2. Caro Luís:

É como dizes, não me lembro mesmo [não, a bold, como faz questão de frisar o autor, em 2ª via]. BCAÇ 2864? BCAÇ 2854? Por aí...

Pois, o João Varanda nada disse, mas pensando nos dados que ele deu, a sua Companhia açoreana não pertenceu ao meu Batalhão, foi sim em reforço à Companhia do meu Batalhão e que ele chama de velhinhos. O que não invalida, pelas datas, que não tenha estado em Có ao mesmo tempo que ele (eu, de tempos a tempos, pela minha missão, ia até lá).

Mas de Có, além de me lembrar bem do quartel, memorizei a estrada em construção (Có-Pelundo-Teixeira Pinto), com segurança especial, os copos (muitos copos bebi em Có, o que não admira, eu até bebi copos onde não havia copos, bebendo pelo gargalo) e o tal capitão miliciano, economista e antifascista, lá de Có (também não lembro o nome, mas estou a ver-lhe a cara) que era um compincha do caraças para cortar na casaca do Marcelo, do Caco e das putas que os pariram.

Já tenho pensado (pouco...) nesta coisa de não me lembrar no nº do meu Batalhão do Pelundo e nem sequer do outro, o de Catió. Acho que foi um filtro qualquer de rejeição que se me meteu na memória depois de lá voltar. Prefiro que assim seja, que esquecer-me dos gajos porreiros com que me cruzei naquela guerra de merda, obrigando-nos a sermos camaradas mais que irmãos.

Lembras-te? Um qualquer cabrão, daqueles gajos de merda, os mal paridos, os egoístas e das peneiras de merda, também os havia de quando em vez e um pouco por toda a parte, na Guiné tinham a vida toda fodida, um gajo na guerra se não consegue ser camarada está mesmo fodido de todo, não enturma e tem de aguentar solitariamente com os cornos solitários e, na guerra, um gajo tem de ser camarada senão não aguenta as solidões dos guerreiros a pensar na terra e nos seus.

E acho que a Guiné nos deu isso a todos, sermos fodidos com os pretos que lá nos queriam, amigos dos pretos amigos e camaradas para o maralhal. Um gajo no mato que trocasse os circuitos, querendo foder camarada, estava ele lixado porque entrava em curto-circuito. Hoje, julgo que nos resta essa humanização, camarada entre camaradas (e que a cada um nos tornou melhores como homens), aspecto positivo, e limparmos a alma do pior que fizemos ao estarmos ali - andarmos a foder pretos por defenderem terra sua. Se conservarmos o melhor e nos reconciliarmos no pior, interiorizando respeito por quem nos combateu e dando-lhes a razão que tinham, então somos mesmo, todos, uns gajos porreiros.

Pois o blogue está a ficar catita, mais malta, mais contributos, a coisa apura-se. E verdade seja dita, o blogue ganhou com a chegada de um talento literário e de uma enorme inteireza de alma recuperada - que grande Briote! Que limpeza de memória, que verticalidade e, sobretudo, que poder de escrita! Um espectáculo, como diria o meu filho mais novo. E o puzzle vai-se completando. Ou muito me engano, ou a procissão ainda vai no adro.

Só te posso agradecer e elogiar a tua obra que nos levou a tantos, levando a mais no futuro (estou certo), a sermos honestos com o nosso passado como forma única de não nos escondermos, sacudindo dos olhos a lama da bolanha para entendermos que estivemos ali, não devendo estar ali, mas estando ali, agora aqui sem esquecer termos estado ali.

Grande abraço para ti. Outros tantos para os restantes e estimados camaradas tertulianos.
João Tunes

Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)

Pelundo > Dezembro de 1969 > O nosso artista ao volante do jipe MG-70-86. © João Tunes (2005).


1. Há tempos o João Tunes mandou-me umas fotos do tempo dele, no Pelundo e depois, da porrada que levou, no Catió e arredores...

Por outro laddo, apareceu-nos aí o João Varanda que esteve em Có e prometeu arranjar mais umas fotos... Daí estar a pensar em criar uma página sobre esta região Có - Pelundo - Teixeira Pinto...

Disse isso ao João, ao mesmo tempo que lhe perguntava, sem malícia, se já lhe tinha passado a branca na memória: ele que que esteve na CCS do Batalhão, sediado no Pelundo, não sabe ou quer lembrar-se do númerro do raio do batalhão... Ele lá tem as suas razões que a tertúlia respeita...

Perguntei-lhe também se o João Varanda, de Coimbra, já lhe tinha respondido. Eis aqui a mensagem do nosso querido, frontal e sempre bem-vindo João Tunes, autor do blogue Água Lisa (4). (cuja visita regular eu recomendo aos nossos amigos e camaradas de tertúlia).

2. Caro Luís:

É como dizes, não me lembro mesmo [não, a bold, como faz questão de frisar o autor, em 2ª via]. BCAÇ 2864? BCAÇ 2854? Por aí...

Pois, o João Varanda nada disse, mas pensando nos dados que ele deu, a sua Companhia açoreana não pertenceu ao meu Batalhão, foi sim em reforço à Companhia do meu Batalhão e que ele chama de velhinhos. O que não invalida, pelas datas, que não tenha estado em Có ao mesmo tempo que ele (eu, de tempos a tempos, pela minha missão, ia até lá).

Mas de Có, além de me lembrar bem do quartel, memorizei a estrada em construção (Có-Pelundo-Teixeira Pinto), com segurança especial, os copos (muitos copos bebi em Có, o que não admira, eu até bebi copos onde não havia copos, bebendo pelo gargalo) e o tal capitão miliciano, economista e antifascista, lá de Có (também não lembro o nome, mas estou a ver-lhe a cara) que era um compincha do caraças para cortar na casaca do Marcelo, do Caco e das putas que os pariram.

Já tenho pensado (pouco...) nesta coisa de não me lembrar no nº do meu Batalhão do Pelundo e nem sequer do outro, o de Catió. Acho que foi um filtro qualquer de rejeição que se me meteu na memória depois de lá voltar. Prefiro que assim seja, que esquecer-me dos gajos porreiros com que me cruzei naquela guerra de merda, obrigando-nos a sermos camaradas mais que irmãos.

Lembras-te? Um qualquer cabrão, daqueles gajos de merda, os mal paridos, os egoístas e das peneiras de merda, também os havia de quando em vez e um pouco por toda a parte, na Guiné tinham a vida toda fodida, um gajo na guerra se não consegue ser camarada está mesmo fodido de todo, não enturma e tem de aguentar solitariamente com os cornos solitários e, na guerra, um gajo tem de ser camarada senão não aguenta as solidões dos guerreiros a pensar na terra e nos seus.

E acho que a Guiné nos deu isso a todos, sermos fodidos com os pretos que lá nos queriam, amigos dos pretos amigos e camaradas para o maralhal. Um gajo no mato que trocasse os circuitos, querendo foder camarada, estava ele lixado porque entrava em curto-circuito. Hoje, julgo que nos resta essa humanização, camarada entre camaradas (e que a cada um nos tornou melhores como homens), aspecto positivo, e limparmos a alma do pior que fizemos ao estarmos ali - andarmos a foder pretos por defenderem terra sua. Se conservarmos o melhor e nos reconciliarmos no pior, interiorizando respeito por quem nos combateu e dando-lhes a razão que tinham, então somos mesmo, todos, uns gajos porreiros.

Pois o blogue está a ficar catita, mais malta, mais contributos, a coisa apura-se. E verdade seja dita, o blogue ganhou com a chegada de um talento literário e de uma enorme inteireza de alma recuperada - que grande Briote! Que limpeza de memória, que verticalidade e, sobretudo, que poder de escrita! Um espectáculo, como diria o meu filho mais novo. E o puzzle vai-se completando. Ou muito me engano, ou a procissão ainda vai no adro.

Só te posso agradecer e elogiar a tua obra que nos levou a tantos, levando a mais no futuro (estou certo), a sermos honestos com o nosso passado como forma única de não nos escondermos, sacudindo dos olhos a lama da bolanha para entendermos que estivemos ali, não devendo estar ali, mas estando ali, agora aqui sem esquecer termos estado ali.

Grande abraço para ti. Outros tantos para os restantes e estimados camaradas tertulianos.
João Tunes