10 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCLV: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel

Guiné- Bissau > Guileje > 2005 > Restos da estrutura (pilares de cimento armado) que sustentava a rede de arame farpado do antigo aquartelamento. Mais de trinta anos depois, a natureza volta a impor o seu domínio sobre os homens e as suas máquinas de guerra.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)



Notícias dos nossos amigos da AD - Acção para o Desenvolvimento, a ONG guineense fundada e dirigida pelo Pepito (Carlos Schwarz):


Começaram os preparativos para a recuperação do Quartel de Guileje > 4 de Dezembro de 2005 > Reportagem


O Projecto Guiledje (respeitando a grafia usada pelos nossos amigos) (1) vai ser uma das prioridades da AD para 2006.

Parece haver um grande entusiasmo à volta desta iniciativa por parte dos quadros desta ONG guineense, mas também das "comunidades locais envolvidas, em especial as de Guiledje, Medjo e Iemberém, assim como do nosso parceiro europeu, o Instituto Marquês de Valle Flôr".

Foto nº 1 - O topógrafo faz o levantamento dos últimos pontos da quadrícula.


© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Contando com a colaboração de várias tabancas dos arredores, começou por se proceder à limpeza e demarcação da área do antigo quartel, "tendo-se identificado os diversos vestígios que facilitarão a localização das antigas infraestruturas militares".


O levantamento e elaboração da planta topográfica do quartel e arredores (cerca de 6 ha) deverão estar concluídos no final da primeira quinzena de Dezembro de 2005. Nelas ficarão registadas "as fundações das antigas instalações, os abrigos subterrâneos, os marcos, as trincheiras, a linha de pilares de arame farpado e as árvores mais imponentes que vão ser preservadas".

Foto nº 2 - O bom humor do nosso amigo Pepito não faltou na reportagem fotográfica que ele fez para nós.

Legenda: "Para que qualquer projecto tenha sucesso, exige-se o sacrifício de um animal para escorraçar os maus espíritos".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


É aguardada a chegada a Bissau, em 13 de Janeiro de 2006, do arquitecto responsável pela recuperação paisagista do local. Ele vai trabalhar com a equipa local na reconversão do quartel, incluindo "a instalação das palhotas para os ecoturistas, o centro de formação e aprendizagem rural, a sede do parque transfronteiriço, o centro de documentação histórico e as restantes infraestruturas de apoio organizativo".

Foto nº 3 - A presença dos chefes tradicionais locais é bem vinda e, mais do que isso, é "a garantia de que estão connosco e com o projecto".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


Ainda este mês pensa-se poder fazer um furo de água de grande profundidade, de 40 a 60 metros, que irá permitir abastecer o quartel e as tabancas limítrofes.

O repórter fotográfico free-lancer Paulo Barata esteve na Guiné-Bissau no passado mês de Novembro, "onde produziu uma centena de fotos de excelente qualidade que irá servir para editar 9 cartões postais de Cantanhez e criar um cartaz de promoção ecoturística da zona".

Foto nº 4- A leitura da Corão e o juramento de fidelidade dos presentes é "garantia da união de todos na implementação do projecto".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


Ainda segundo a nossa fonte, "em Portugal, o Capitão José Neto [membro da nossa tertúlia] disponibilizou cerca de 150 fotos de Guiledje dos anos 1967-68 que irão ser em breve digitalizadas com a colaboração do Filipe Santos" (que organizou o sítio da AD na NET e que pertence à Escola Superior de Educação de Leiria, um dos parceiros portugueses da AD - Acção para o Desenvolvimento).

Foto nº 5 - As escavações feitas têm trazido à superfície restos de armamento, carros, jericãs, etc.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Está igualmente avançada "a elaboração do Atlas Florístico de Cantanhez, preparado pelo especialista belga Professor François Malaisse [do Jardim Nacional Botânico da Bélgica], o qual será editado em Abril de 2006".

A AD anda agora à procura de "um especialista que faça o levantamento da fauna selvagem desta zona".

Foto nº 6 - "O pessoal estava mesmo com fome depois de terem feito mais de 4 horas de trabalho voluntário de limpeza e escavações no interior do antigo quartel".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)









Foto nº 7 - Estas placas servem para se marcar a localização de cada uma das infraestruturas que existia antigamente.

A este propósito veja-se uma planta do aquartelamento, por nós publicada, de 1966, e da autoria do então Capitão Nuno Rubim, hoje coronel e talvez o maior especialista português em história da artilharia.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)




Recorde-se que Guileje fica(va) entre Mejo, a noroeste, na estrada que da(va) a Bedanda; Gadamel fica(va) a sul, ou sudeste, mesmo na fronteira. A localidade e o aquartelamento de Guileje eram cortados pela estrada que ligava a Mejo (à esquerda) e a Gadamael (à direita).

Foto nº 8 - Estes são antigos combatentes do Exército Português em Guileje, e que viviam no quartel. Presume-se que fossem milícias. O seu conhecimento do terreno permitiu mais facilmente a localização de cada um dos edifícios do quartel.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)







Por Guileje passaram diversas unidades, as duas últimas terão sido a CCAC 3477 (1970/71) e a CCAV 8350 (1972/73), esta uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos, incluindo gente da Ilha do Pico, segundo informações do Pepito.

Estima-se que vivessem na tabanca de Guileje cerca de 600 africanos, entre civis e militares, na altura em que o aquartelamento foi abandonado, em 22 de Maio de 1973, pelas NT (CCAV 8350, 1972/73), depois de um cerco de 5 dias pela guerrilha do PAIGC.

Foto nº 9 - "A reza final é um momento de grande união e de engajamento nas actividades que iremos fazer ao longo destes 4 anos", comenta o nosso repórter fotográfico, o Eng. Carlos Schwarz, mais conhecido na sua terra como Pepito.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)





E, por fim, uma referência simpática ao nosso Blogue e à nossa tertúlia: "De salientar que, também em Portugal, um grupo de antigos militares que fez a guerra na Guiné-Bissau e que se juntaram numa tertúlia, tomaram a iniciativa de criar a ONG (Organização Nova Guiledje), destinada a contribuir e dar apoio a esta iniciativa".

Este recado é para o Humberto Reis, que é o pai da criança... Na realidade, a ideia da ONG - Organização Nova Guiledje não passa disso mesmo, uma ideia bonita que terá de se reproduzir em ideias concretas e efectivas no domínio da cooperação e da solidariedade.

Foto nº 10 - O futuro do projecto de Guileje também pode passar pela inteligência e generosidade de muitos outros actores e figurantes que não aparecem nesta sequência fotográfica, incluindo os militares portugueses que por lá passaram... Pelo menos uma dúzia de companhias, perfazendo mais de 1500 homens...

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Ainda recentemente perguntei ao Pepito se tinha contactos com os ex-militares açorianos. A resposta dele foi não, embora ele saiba que nos Açores e em particular na Ilha do Pico vivem alguns dos que lá estiveram, provavelmente integrados no grupo dos "gringos açorianos" (sic), a CCAÇ 3477 (1971/72). Mas a CCAV 8352 (que só lá esteve seis meses, entre Dez 1971 e Mai 1973) , também era constituída por pessoal açoriano (2).

Na mesma data (21 de Novembro último), o Pepito mandou-me, em anexo, "um quadro que um amigo meu português, António Estácio, me ajudou a fazer, listando todas as companhias que passaram por Guiledje, onde estão os nomes de algumas pessoas que nos têm disponibilizado documentos (fotografias, memórias e informações)"... É uma lista ainda "muito limitada, a necessitar de identificar mais pessoas interessadas em colaborar e a precisar algumas das datas em dúvida".

Aqui fica a lista das unidades militares que estiverem aquarteladas em Guileje (1964-1973):

Unidade / Período de tempo / Pessoa de Contacto

CCAÇ 676 / De Set 1964 a (?) / Ninguém

CCAÇ 726 / De Out 1964 a (?) / Teco

CCAÇ 1424 /De Jul a Nov 1966 / Ninguém (2)

CCAÇ 1477 / De Dez 1966 a Jun 1967 / Ninguém (2)

CART 1613 / De Jun 1967 a Mai 1968 / José Neto (2)

CCAÇ 2316 / De Mai 1968 a Jul 1969 / Ninguém

CART 2410 / De Jul 1969 a Mar 1970 / Ninguém

CCAÇ 2617 (Magriços) / De Mar 1970 a Fev 1971 / Abílio (2)

CCAÇ 3325 / De Fev a Dez 1971 / Parracho

CCAÇ 3477 (Gringos de Guiledje) / De Dez 1971 a Dez 1972 / Ninguém

CCAV 8350/72 (Gringos Açorianos ) / De Dez 1972 a Mai 1973) / Ninguém (2)

__________

(1) Vd. post de 6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXL: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)

(2) Vd. post de 5 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXIX: José Neto, outro senhor de Guileje (CART 1613, 1967/68) . O nome completo do Abílio, da CCAÇ 2617 (Magriços): Abílio Alberto Pimentel da Assunção.

O Capitão (hoje, coronel) Nuno Rubim deve ter pertencido a uma das Companhias que esteve em Guileje no ano de 1966: a CCAÇ 1424 ou a CCAÇ 1477.

Por fim, da CCAV 8350, temos notícia do ex-furriel miliciano, ranger, Casimiro Carvalho (que pertenceu à Guarda Nacional Republicana / Brigada de Trânsito, estando hoje reformado). Encontramos no sítio da Associação de Operações Especiais (AOE) uma mensagem e o contacto dele, no livro de visitas, com data de 4 de Setembro de 2004:

"É a primeira vez que escrevo aqui. Fui do 2º Curso de Sargentos de 72. Fui para a Guiné integrado na CCAV 8350, infelizmente célebre por ter estado no maldito Inferno Guileje-Gadamael Porto.

"Para quem me conhece sou o da BT/GNR (aposentado), para os restantes sou mais um orgulhoso RANGER que aqui deixa a sua marca indelével. Parabéns pelo site, parabéns aos carolas que dão o seu tempo... e não só, em prol desta família tão grande que dá pelo nome de RANGERS (...). José Carvalho

Guiné 63/74 - CCCLV: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel

Guiné- Bissau > Guileje > 2005 > Restos da estrutura (pilares de cimento armado) que sustentava a rede de arame farpado do antigo aquartelamento. Mais de trinta anos depois, a natureza volta a impor o seu domínio sobre os homens e as suas máquinas de guerra.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)



Notícias dos nossos amigos da AD - Acção para o Desenvolvimento, a ONG guineense fundada e dirigida pelo Pepito (Carlos Schwarz):


Começaram os preparativos para a recuperação do Quartel de Guileje > 4 de Dezembro de 2005 > Reportagem


O Projecto Guiledje (respeitando a grafia usada pelos nossos amigos) (1) vai ser uma das prioridades da AD para 2006.

Parece haver um grande entusiasmo à volta desta iniciativa por parte dos quadros desta ONG guineense, mas também das "comunidades locais envolvidas, em especial as de Guiledje, Medjo e Iemberém, assim como do nosso parceiro europeu, o Instituto Marquês de Valle Flôr".

Foto nº 1 - O topógrafo faz o levantamento dos últimos pontos da quadrícula.


© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Contando com a colaboração de várias tabancas dos arredores, começou por se proceder à limpeza e demarcação da área do antigo quartel, "tendo-se identificado os diversos vestígios que facilitarão a localização das antigas infraestruturas militares".


O levantamento e elaboração da planta topográfica do quartel e arredores (cerca de 6 ha) deverão estar concluídos no final da primeira quinzena de Dezembro de 2005. Nelas ficarão registadas "as fundações das antigas instalações, os abrigos subterrâneos, os marcos, as trincheiras, a linha de pilares de arame farpado e as árvores mais imponentes que vão ser preservadas".

Foto nº 2 - O bom humor do nosso amigo Pepito não faltou na reportagem fotográfica que ele fez para nós.

Legenda: "Para que qualquer projecto tenha sucesso, exige-se o sacrifício de um animal para escorraçar os maus espíritos".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


É aguardada a chegada a Bissau, em 13 de Janeiro de 2006, do arquitecto responsável pela recuperação paisagista do local. Ele vai trabalhar com a equipa local na reconversão do quartel, incluindo "a instalação das palhotas para os ecoturistas, o centro de formação e aprendizagem rural, a sede do parque transfronteiriço, o centro de documentação histórico e as restantes infraestruturas de apoio organizativo".

Foto nº 3 - A presença dos chefes tradicionais locais é bem vinda e, mais do que isso, é "a garantia de que estão connosco e com o projecto".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


Ainda este mês pensa-se poder fazer um furo de água de grande profundidade, de 40 a 60 metros, que irá permitir abastecer o quartel e as tabancas limítrofes.

O repórter fotográfico free-lancer Paulo Barata esteve na Guiné-Bissau no passado mês de Novembro, "onde produziu uma centena de fotos de excelente qualidade que irá servir para editar 9 cartões postais de Cantanhez e criar um cartaz de promoção ecoturística da zona".

Foto nº 4- A leitura da Corão e o juramento de fidelidade dos presentes é "garantia da união de todos na implementação do projecto".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


Ainda segundo a nossa fonte, "em Portugal, o Capitão José Neto [membro da nossa tertúlia] disponibilizou cerca de 150 fotos de Guiledje dos anos 1967-68 que irão ser em breve digitalizadas com a colaboração do Filipe Santos" (que organizou o sítio da AD na NET e que pertence à Escola Superior de Educação de Leiria, um dos parceiros portugueses da AD - Acção para o Desenvolvimento).

Foto nº 5 - As escavações feitas têm trazido à superfície restos de armamento, carros, jericãs, etc.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Está igualmente avançada "a elaboração do Atlas Florístico de Cantanhez, preparado pelo especialista belga Professor François Malaisse [do Jardim Nacional Botânico da Bélgica], o qual será editado em Abril de 2006".

A AD anda agora à procura de "um especialista que faça o levantamento da fauna selvagem desta zona".

Foto nº 6 - "O pessoal estava mesmo com fome depois de terem feito mais de 4 horas de trabalho voluntário de limpeza e escavações no interior do antigo quartel".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)









Foto nº 7 - Estas placas servem para se marcar a localização de cada uma das infraestruturas que existia antigamente.

A este propósito veja-se uma planta do aquartelamento, por nós publicada, de 1966, e da autoria do então Capitão Nuno Rubim, hoje coronel e talvez o maior especialista português em história da artilharia.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)




Recorde-se que Guileje fica(va) entre Mejo, a noroeste, na estrada que da(va) a Bedanda; Gadamel fica(va) a sul, ou sudeste, mesmo na fronteira. A localidade e o aquartelamento de Guileje eram cortados pela estrada que ligava a Mejo (à esquerda) e a Gadamael (à direita).

Foto nº 8 - Estes são antigos combatentes do Exército Português em Guileje, e que viviam no quartel. Presume-se que fossem milícias. O seu conhecimento do terreno permitiu mais facilmente a localização de cada um dos edifícios do quartel.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)







Por Guileje passaram diversas unidades, as duas últimas terão sido a CCAC 3477 (1970/71) e a CCAV 8350 (1972/73), esta uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos, incluindo gente da Ilha do Pico, segundo informações do Pepito.

Estima-se que vivessem na tabanca de Guileje cerca de 600 africanos, entre civis e militares, na altura em que o aquartelamento foi abandonado, em 22 de Maio de 1973, pelas NT (CCAV 8350, 1972/73), depois de um cerco de 5 dias pela guerrilha do PAIGC.

Foto nº 9 - "A reza final é um momento de grande união e de engajamento nas actividades que iremos fazer ao longo destes 4 anos", comenta o nosso repórter fotográfico, o Eng. Carlos Schwarz, mais conhecido na sua terra como Pepito.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)





E, por fim, uma referência simpática ao nosso Blogue e à nossa tertúlia: "De salientar que, também em Portugal, um grupo de antigos militares que fez a guerra na Guiné-Bissau e que se juntaram numa tertúlia, tomaram a iniciativa de criar a ONG (Organização Nova Guiledje), destinada a contribuir e dar apoio a esta iniciativa".

Este recado é para o Humberto Reis, que é o pai da criança... Na realidade, a ideia da ONG - Organização Nova Guiledje não passa disso mesmo, uma ideia bonita que terá de se reproduzir em ideias concretas e efectivas no domínio da cooperação e da solidariedade.

Foto nº 10 - O futuro do projecto de Guileje também pode passar pela inteligência e generosidade de muitos outros actores e figurantes que não aparecem nesta sequência fotográfica, incluindo os militares portugueses que por lá passaram... Pelo menos uma dúzia de companhias, perfazendo mais de 1500 homens...

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Ainda recentemente perguntei ao Pepito se tinha contactos com os ex-militares açorianos. A resposta dele foi não, embora ele saiba que nos Açores e em particular na Ilha do Pico vivem alguns dos que lá estiveram, provavelmente integrados no grupo dos "gringos açorianos" (sic), a CCAÇ 3477 (1971/72). Mas a CCAV 8352 (que só lá esteve seis meses, entre Dez 1971 e Mai 1973) , também era constituída por pessoal açoriano (2).

Na mesma data (21 de Novembro último), o Pepito mandou-me, em anexo, "um quadro que um amigo meu português, António Estácio, me ajudou a fazer, listando todas as companhias que passaram por Guiledje, onde estão os nomes de algumas pessoas que nos têm disponibilizado documentos (fotografias, memórias e informações)"... É uma lista ainda "muito limitada, a necessitar de identificar mais pessoas interessadas em colaborar e a precisar algumas das datas em dúvida".

Aqui fica a lista das unidades militares que estiverem aquarteladas em Guileje (1964-1973):

Unidade / Período de tempo / Pessoa de Contacto

CCAÇ 676 / De Set 1964 a (?) / Ninguém

CCAÇ 726 / De Out 1964 a (?) / Teco

CCAÇ 1424 /De Jul a Nov 1966 / Ninguém (2)

CCAÇ 1477 / De Dez 1966 a Jun 1967 / Ninguém (2)

CART 1613 / De Jun 1967 a Mai 1968 / José Neto (2)

CCAÇ 2316 / De Mai 1968 a Jul 1969 / Ninguém

CART 2410 / De Jul 1969 a Mar 1970 / Ninguém

CCAÇ 2617 (Magriços) / De Mar 1970 a Fev 1971 / Abílio (2)

CCAÇ 3325 / De Fev a Dez 1971 / Parracho

CCAÇ 3477 (Gringos de Guiledje) / De Dez 1971 a Dez 1972 / Ninguém

CCAV 8350/72 (Gringos Açorianos ) / De Dez 1972 a Mai 1973) / Ninguém (2)

__________

(1) Vd. post de 6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXL: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)

(2) Vd. post de 5 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXIX: José Neto, outro senhor de Guileje (CART 1613, 1967/68) . O nome completo do Abílio, da CCAÇ 2617 (Magriços): Abílio Alberto Pimentel da Assunção.

O Capitão (hoje, coronel) Nuno Rubim deve ter pertencido a uma das Companhias que esteve em Guileje no ano de 1966: a CCAÇ 1424 ou a CCAÇ 1477.

Por fim, da CCAV 8350, temos notícia do ex-furriel miliciano, ranger, Casimiro Carvalho (que pertenceu à Guarda Nacional Republicana / Brigada de Trânsito, estando hoje reformado). Encontramos no sítio da Associação de Operações Especiais (AOE) uma mensagem e o contacto dele, no livro de visitas, com data de 4 de Setembro de 2004:

"É a primeira vez que escrevo aqui. Fui do 2º Curso de Sargentos de 72. Fui para a Guiné integrado na CCAV 8350, infelizmente célebre por ter estado no maldito Inferno Guileje-Gadamael Porto.

"Para quem me conhece sou o da BT/GNR (aposentado), para os restantes sou mais um orgulhoso RANGER que aqui deixa a sua marca indelével. Parabéns pelo site, parabéns aos carolas que dão o seu tempo... e não só, em prol desta família tão grande que dá pelo nome de RANGERS (...). José Carvalho

Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'

Dos cadernos do Magalhães Ribeiro, ex-furriel milicano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, o mesmo que em 9 de Setembro de 1974 teve o privilégio de arriar a última bandeira portuguesa, no quartel de Mansoa (1), na presença de altos representantes do PAIGC que, por sua vez, hastearam a bandeira da nova República da Guiné-Bissau...


Têm 3 minutos p’ra estar na parada

Safa!... desta já eu me livrei!
A recruta estava concluída,
Nova etapa se apresentava,
Chegara a hora da partida.

Nova guia de marcha recebi,
Dizia: apresente-se no C.I.O.E.
Em baixo noutra linha, Lamego;
Bem, pensei, vamos lá ver como é.

Chegado à cidade logo vi:
C.I., quer dizer, Centro de Instrução,
O.E., Operações Especiais;
«Meti-me noutra alhada, pois então!»

- Você vai p’ró quartel em Penude…
Rápido, já devia lá estar!
- Mas, eu ainda agora cheguei…
- Caluda qu’aqui, até tens de voar!

Lá andamos uns tantos quilómetros
Num Unimog que, de repente, parou:
Apenas se viam dois barracões
À volta, mato... - A gente já chegou?

Veio um aspirante e berrou: - Desçam…
Vão ali, e apresentem-se, já!
Comecei então a entender,
Não estávamos ali para tomar chá.

- Aonde é o quartel?... perguntei.
- Estás a querer gozo, ó piço?
- Perguntar não ofende!... disse eu.
- Tu já estás no quartel, ó chouriço!

Ora esta especialidade
Também conhecida por Ranger,
Não pode ser descrita no íntimo,
Não vá ser lida por um nabo qualquer.

Não só devido ao grande risco
De interpretações distorcidas
Mas pela dignidade e respeito
Que a todos Rangers são devidas.

Porque… por muito que se rebusque,
Por muitas palavras que escrevamos,
Jamais se dirá da camaradagem
E das amizades qu’ali enraizamos.

Para ultrapassar a instrução,
Seus efeitos psíquicos e físicos,
Aprende-se onde, além das teorias,
Se esgotam os limites práticos.

Ao longo de onze semanas
Muitas vezes abismado constatei
Q’uma réstea de alma reservava
Depois de pensar já arrebentei.

Mas para não criar mais um tabu
E ser acusado de coisas esconder,
Só me resta dar uma ligeira noção
Do que no curso nos é proposto vencer.

Assim, um Ranger é aquele que:
Vê um Fantasma e beija um morto,
Numa Largada faz uma noitada
E na Guerrilheira não fica absorto.

Tal como Cristo vai ao Calvário
Nos Esgotos prova, mas não abusa;
Seu dia tem 24 horas
E ao Esforço final não se recusa.

Dá o que pode na Dureza 11
O que não pode na Ranger ousa
Vai de Slide e vem de Rapel
Dança a Chula-picada e repousa.

Se a Primeira dose for de bom tinto,
Disfarça sempre o Zig Zag
Ressacas, só na Piscina Ranger
Antes que o Vampiro a estrague.

Vai pescar em Parido e Reconcos,
Namora a Meadas com paixão,
Adora campismo no parque Vilar,
Só bebe águas marca Balsemão!

Desvendados estes segredos,
Nestas esclarecedoras quadras,
Fica quase tudo aqui escrito
Que é possível dizer, em palavras.

Mas se leu isto e tem dúvidas
E pretender conhecer algo mais,
Ofereça-se como voluntário
Para as Operações Especiais.

Para o curso de Ranger concluir
Diga-se, em abono da verdade,
São precisas três características:
Carácter, Energia, e Dignidade

Mas só se é Ranger a 100%
Da mais elitista qualidade
Se este for ainda dotado de:
Disciplina, Patriotismo e Lealdade


- Atenção, têm três minutos p’ra estar na parada...
E, assim, em Penude, pr’ó combate nos preparamos
Éramos só cento e tal, mas o nosso lema diz;
“Que os muitos por ser poucos não temamos”.

Magalhães Ribeiro - Soldado Instruendo nº 114 CIOE - Penude - Turno: 4º/73 - 3ª equipa - 4º Grupo

_________

(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'

Dos cadernos do Magalhães Ribeiro, ex-furriel milicano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, o mesmo que em 9 de Setembro de 1974 teve o privilégio de arriar a última bandeira portuguesa, no quartel de Mansoa (1), na presença de altos representantes do PAIGC que, por sua vez, hastearam a bandeira da nova República da Guiné-Bissau...


Têm 3 minutos p’ra estar na parada

Safa!... desta já eu me livrei!
A recruta estava concluída,
Nova etapa se apresentava,
Chegara a hora da partida.

Nova guia de marcha recebi,
Dizia: apresente-se no C.I.O.E.
Em baixo noutra linha, Lamego;
Bem, pensei, vamos lá ver como é.

Chegado à cidade logo vi:
C.I., quer dizer, Centro de Instrução,
O.E., Operações Especiais;
«Meti-me noutra alhada, pois então!»

- Você vai p’ró quartel em Penude…
Rápido, já devia lá estar!
- Mas, eu ainda agora cheguei…
- Caluda qu’aqui, até tens de voar!

Lá andamos uns tantos quilómetros
Num Unimog que, de repente, parou:
Apenas se viam dois barracões
À volta, mato... - A gente já chegou?

Veio um aspirante e berrou: - Desçam…
Vão ali, e apresentem-se, já!
Comecei então a entender,
Não estávamos ali para tomar chá.

- Aonde é o quartel?... perguntei.
- Estás a querer gozo, ó piço?
- Perguntar não ofende!... disse eu.
- Tu já estás no quartel, ó chouriço!

Ora esta especialidade
Também conhecida por Ranger,
Não pode ser descrita no íntimo,
Não vá ser lida por um nabo qualquer.

Não só devido ao grande risco
De interpretações distorcidas
Mas pela dignidade e respeito
Que a todos Rangers são devidas.

Porque… por muito que se rebusque,
Por muitas palavras que escrevamos,
Jamais se dirá da camaradagem
E das amizades qu’ali enraizamos.

Para ultrapassar a instrução,
Seus efeitos psíquicos e físicos,
Aprende-se onde, além das teorias,
Se esgotam os limites práticos.

Ao longo de onze semanas
Muitas vezes abismado constatei
Q’uma réstea de alma reservava
Depois de pensar já arrebentei.

Mas para não criar mais um tabu
E ser acusado de coisas esconder,
Só me resta dar uma ligeira noção
Do que no curso nos é proposto vencer.

Assim, um Ranger é aquele que:
Vê um Fantasma e beija um morto,
Numa Largada faz uma noitada
E na Guerrilheira não fica absorto.

Tal como Cristo vai ao Calvário
Nos Esgotos prova, mas não abusa;
Seu dia tem 24 horas
E ao Esforço final não se recusa.

Dá o que pode na Dureza 11
O que não pode na Ranger ousa
Vai de Slide e vem de Rapel
Dança a Chula-picada e repousa.

Se a Primeira dose for de bom tinto,
Disfarça sempre o Zig Zag
Ressacas, só na Piscina Ranger
Antes que o Vampiro a estrague.

Vai pescar em Parido e Reconcos,
Namora a Meadas com paixão,
Adora campismo no parque Vilar,
Só bebe águas marca Balsemão!

Desvendados estes segredos,
Nestas esclarecedoras quadras,
Fica quase tudo aqui escrito
Que é possível dizer, em palavras.

Mas se leu isto e tem dúvidas
E pretender conhecer algo mais,
Ofereça-se como voluntário
Para as Operações Especiais.

Para o curso de Ranger concluir
Diga-se, em abono da verdade,
São precisas três características:
Carácter, Energia, e Dignidade

Mas só se é Ranger a 100%
Da mais elitista qualidade
Se este for ainda dotado de:
Disciplina, Patriotismo e Lealdade


- Atenção, têm três minutos p’ra estar na parada...
E, assim, em Penude, pr’ó combate nos preparamos
Éramos só cento e tal, mas o nosso lema diz;
“Que os muitos por ser poucos não temamos”.

Magalhães Ribeiro - Soldado Instruendo nº 114 CIOE - Penude - Turno: 4º/73 - 3ª equipa - 4º Grupo

_________

(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

09 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

Publicamos hoje a IV (e última) parte do depoimento do brigadeiro Hélio Felgas. Selecção: minha e do Humberto Reis. Fonte: "Os últimos guerreiros do império" (Amadora: Erasmo, 1995. 135-139)

Trata-se do Capº III de um relatório que o então coronel, comandante do agrupamento de Bafatá, enviou ao General Spínola, "então meu Comandante-Chefe, onde defendia que a concessão da independência à Guiné Portuguesa não iria agravar, antes pelo contrário, a situação em qualquer das outras Províncias Ultramarinas".

Nesse documento Hélio Felgas defendia igualmente o seu ponto de visat segundo o qual "só no campo político podia ser encontrada uma solução honrosa e vantajosa, já que as nossas possibilidades militares se encontravam muitos reduzidas", face a um inimigo que se fortalecera em demasia.

No capítulo III do relatório, o autor debruça-se sobre "as nossas possibilidades militares". Algunas das suas frases, merecm destaque:

"Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje".

"Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável".

"Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente passadas a ferro".

"Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas".

"Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação".

"Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber (...)".

"Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6, o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco".

"(...) o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político".


As nossas possibilidades militares

Neste final de 1968 a situação militar na Guiné chegou a um ponto tal que só muito dificilmente e com muito optimismo se poderá antever uma melhoria significativa.
Nos gabinetes e em frente da carta talvez não seja difícil encontrar-se uma solução vitoriosa. Os cercos, as batidas, os golpes de mão, o reordenamento das populações e sua autodefesa, tudo isso é aí fácil de fazer. No mato, porém, é muito difícil, e quem escreve isto tem 3 anos de mato.

Mesmo que venham mais helicópteros, mais «paras», mais Artilharia e mais Aviação e ainda que os efectivos das forças terrestres sejam aumentados e estas sejam adequadamente dotadas com as granadas, munições e armas colectivas que agora lhes faltam, mesmo que isso suceda em breve prazo, nem assim o nosso êxito militar será garantido. O inimigo está demasiado bem armado, bem apoiado pela população, bem organizado e bem enraizado num terreno que lhe é favorável, para poder ser batido e expulso, pelo menos com a facilidade que se julga.

Realize-se uma operação em larga escala e veja-se o resultado: uns mortos e uns feridos (nossos e deles), umas armas apreendidas, uns acampamentos destruídos e que mais ? Mais nada. Se ao Inimigo não convier o contacto, basta esconder-se no mato e esperar que as nossas tropas se retirem. Ele lá ficará e reaparecerá quando quiser, talvez até emboscando as NT quando elas, julgando-se vitoriosas, regressarem aos aquartelamentos.

Aliás, o que se entende por uma operação em larga escala ? 4 on 5 companhias de forças terrestres, uma ou duas de «paras» e comandos e a Aviação. Que faremos com estes efectivos? Uma operação, mais nada. Alguns dias depois tudo estará na mesma.
Há dias, aproveitando um PCV de uma Operação, andei «à cata» de acampamentos inimigos. Descobriram-se 5 ou 6. Assim que eram descobertos chamava-se a Aviação que os bombardeava. Mas o que era a Aviação ? Era uma parelha de Fiats que lançava as suas bombas, aliás com grande precisão. no objectivo indicado pelo PCV. Ou então eram os T-6 (só um), igualmente com excelente pontaria.

E eu pensei: com estes pilotos, se em vez de dois Fiats tivessem aparecido 15 ou 20, outros tantos T-6 e uma meia dúzia de helis armados então sim, ter-se-ia feito uma acção lucrativa, em especial se fosse coordenada com o lançamento de uma companhia em helis.

Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje.
Em minha opinião, toda a actividade militar na Guiné tem de ser mudada. Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente «passadas a ferro». A actual dispersão não pode dar qualquer resultado.

Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável.

Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas. De que serve atacar um acampamento In se a um quilómetro de distância ficaram tabancas e lavras que voltarão a ser utilizadas pelo In, apoiando-o e permitindo-lhe que lá se mantenha? Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação.
O que e preciso definir bem é este problema da população civil sob controlo do In. Dezenas de milhares de nativos vivem nas regiões sob domínio do In, em tabancas perfeitamente visíveis do ar. Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber, pois enquanto estas populações existirem o In aguentar-se-á, estruturar-se-á e estará em condições de nos incomodar.

For outro lado, convém, talvez, olharmos para o que se passa no Vietname - que tem bastantes semelhanças com a Guiné. Mais de meio milhão de norte-americanos extraordinariamente bem armados e auxiliados por 850000 soldados sul-vietnamitas. nao conseguem liquidar um adversário que conta apenas 140000 homens, dos quais só 80000 são tropas regulares do Vietname do Norte. A proporção é de 1 para 10, em forças terrestres. Além disso, o Vietcong e o seu aliado norte-vietnamês não utilizam nem Aviação nem Marinha e só apresentaram uma amostra de blindados.
Apesar desta desproporção, o Vietcong não foi vencido e esta prestes a vencer.
Na Guiné, o In não é tão bom combatente como o Vietcong e o apoio externo que tem recebido, agora importante, não se compara com o que a Rússia e a China concedem ao Vietcong. Essas são as duas principais diferenças que notamos. Aliás, em parte compensada pela deficiência dos nossos efectivos, do nosso armamento, da nossa instrução militar, do nosso apoio aéreo e naval.

Para podermos dominar a guerrilha na Guiné precisaríamos triplicar, pelo menos, os efectivos agora existentes nos três ramos das forças armadas. E mesmo assim ficaríamos longe da proporção viet-namita (que não foi suficiente, note-se, para se obter a vitória militar). Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6? o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco.

Eu bem sei que quem não conhece o mato da Guiné, nem as dificuldades deste tipo de guerra, sente-se inclinado a considerar exageradas as minhas palavras. Infelizmente, tenho a certeza do que afirmo. Deixou-se o In inchar demais para se poder agora desalojá-lo com os meios que temos.

Esta afirmação pode parecer chocante, em especial para as pessoas que não conhecem o assunto com a profundidade que eu conheço. E com certeza que não me acarretará simpatias ou louvores, em especial por parte das pessoas que só gostam de ouvir aquilo que lhes agrade. É evidente que eu ficaria muito mais bem visto se traçasse o quadro da situação militar na Guiné, muito mais optimista, ainda que menos verdadeiro. Talvez até fosse louvado se afirmasse que a guerra na Guiné, tendo chegado ao ponto a que chegou, se pode vencer no campo militar e sem grande dificuldade.

Mas isso não o faço eu, até porque a euforia duraria pouco e seria, em breve, desmentido pelos factos. Eu desejo salientar que só pode mostrar-se optimista a quem conhecer a guerra da Guiné apenas do seu gabinete ou da sala de operações. Eu desejo afirmar que não estou imbuído de qualquer senti-mento derrotista. Continuo a demonstrá-lo no mato, mantendo uma actividade ofensiva a que não poupo os meus subordinados nem me poupo a mim. Mas o que acho é que chegou a altura de se dizer a verdade. E a verdade é que, na Guiné, estamos apenas aguentando a situação. Estamos à espera que o In adquira suficiente estrutura e capacidade militar para correr connosco. Limitamo-nos a espicaçá-lo e ao de leve. Mostramo-nos incapazes de o desalojar definitivamente seja de que área for.

E tudo isto porque não temos meios nem efectivos militares adequados e suficientes.
Mas ainda que os tivéssemos e que conseguíssemos empurrar o In em todas as frentes, até às fronteiras, que faríamos depois? Como conseguiríamos evitar novas infiltrações enquanto o Senegal e a República da Guiné derem a ajuda que dão ao PAIGC9 . A guerra no Vietname ensina-nos que o bombardeamento do Senegal ou do República da Guiné não resolveria o problema, pelo contrário, complicá-lo-ia. E isto porque o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político, a guerra na Guiné só pode acabar se Portugal conseguir convencer o Senegal e a República da Guiné deixarem de auxiliar o PAIGC ou qualquer outro movimento cujo objectivo seja independência da Guiné-Bissau.

Não nos parece, porém, que em face da mentalidade internacional agora vigente, alguém bem informado considere possível Senegal ou a República da Guiné apoiarem a nossa política ultramarina. Porque só apoiando essa política os governos de Dakar e Conakry poderiam suspender o auxílio ao PAIGC.

Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

Publicamos hoje a IV (e última) parte do depoimento do brigadeiro Hélio Felgas. Selecção: minha e do Humberto Reis. Fonte: "Os últimos guerreiros do império" (Amadora: Erasmo, 1995. 135-139)

Trata-se do Capº III de um relatório que o então coronel, comandante do agrupamento de Bafatá, enviou ao General Spínola, "então meu Comandante-Chefe, onde defendia que a concessão da independência à Guiné Portuguesa não iria agravar, antes pelo contrário, a situação em qualquer das outras Províncias Ultramarinas".

Nesse documento Hélio Felgas defendia igualmente o seu ponto de visat segundo o qual "só no campo político podia ser encontrada uma solução honrosa e vantajosa, já que as nossas possibilidades militares se encontravam muitos reduzidas", face a um inimigo que se fortalecera em demasia.

No capítulo III do relatório, o autor debruça-se sobre "as nossas possibilidades militares". Algunas das suas frases, merecm destaque:

"Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje".

"Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável".

"Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente passadas a ferro".

"Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas".

"Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação".

"Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber (...)".

"Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6, o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco".

"(...) o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político".


As nossas possibilidades militares

Neste final de 1968 a situação militar na Guiné chegou a um ponto tal que só muito dificilmente e com muito optimismo se poderá antever uma melhoria significativa.
Nos gabinetes e em frente da carta talvez não seja difícil encontrar-se uma solução vitoriosa. Os cercos, as batidas, os golpes de mão, o reordenamento das populações e sua autodefesa, tudo isso é aí fácil de fazer. No mato, porém, é muito difícil, e quem escreve isto tem 3 anos de mato.

Mesmo que venham mais helicópteros, mais «paras», mais Artilharia e mais Aviação e ainda que os efectivos das forças terrestres sejam aumentados e estas sejam adequadamente dotadas com as granadas, munições e armas colectivas que agora lhes faltam, mesmo que isso suceda em breve prazo, nem assim o nosso êxito militar será garantido. O inimigo está demasiado bem armado, bem apoiado pela população, bem organizado e bem enraizado num terreno que lhe é favorável, para poder ser batido e expulso, pelo menos com a facilidade que se julga.

Realize-se uma operação em larga escala e veja-se o resultado: uns mortos e uns feridos (nossos e deles), umas armas apreendidas, uns acampamentos destruídos e que mais ? Mais nada. Se ao Inimigo não convier o contacto, basta esconder-se no mato e esperar que as nossas tropas se retirem. Ele lá ficará e reaparecerá quando quiser, talvez até emboscando as NT quando elas, julgando-se vitoriosas, regressarem aos aquartelamentos.

Aliás, o que se entende por uma operação em larga escala ? 4 on 5 companhias de forças terrestres, uma ou duas de «paras» e comandos e a Aviação. Que faremos com estes efectivos? Uma operação, mais nada. Alguns dias depois tudo estará na mesma.
Há dias, aproveitando um PCV de uma Operação, andei «à cata» de acampamentos inimigos. Descobriram-se 5 ou 6. Assim que eram descobertos chamava-se a Aviação que os bombardeava. Mas o que era a Aviação ? Era uma parelha de Fiats que lançava as suas bombas, aliás com grande precisão. no objectivo indicado pelo PCV. Ou então eram os T-6 (só um), igualmente com excelente pontaria.

E eu pensei: com estes pilotos, se em vez de dois Fiats tivessem aparecido 15 ou 20, outros tantos T-6 e uma meia dúzia de helis armados então sim, ter-se-ia feito uma acção lucrativa, em especial se fosse coordenada com o lançamento de uma companhia em helis.

Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje.
Em minha opinião, toda a actividade militar na Guiné tem de ser mudada. Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente «passadas a ferro». A actual dispersão não pode dar qualquer resultado.

Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável.

Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas. De que serve atacar um acampamento In se a um quilómetro de distância ficaram tabancas e lavras que voltarão a ser utilizadas pelo In, apoiando-o e permitindo-lhe que lá se mantenha? Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação.
O que e preciso definir bem é este problema da população civil sob controlo do In. Dezenas de milhares de nativos vivem nas regiões sob domínio do In, em tabancas perfeitamente visíveis do ar. Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber, pois enquanto estas populações existirem o In aguentar-se-á, estruturar-se-á e estará em condições de nos incomodar.

For outro lado, convém, talvez, olharmos para o que se passa no Vietname - que tem bastantes semelhanças com a Guiné. Mais de meio milhão de norte-americanos extraordinariamente bem armados e auxiliados por 850000 soldados sul-vietnamitas. nao conseguem liquidar um adversário que conta apenas 140000 homens, dos quais só 80000 são tropas regulares do Vietname do Norte. A proporção é de 1 para 10, em forças terrestres. Além disso, o Vietcong e o seu aliado norte-vietnamês não utilizam nem Aviação nem Marinha e só apresentaram uma amostra de blindados.
Apesar desta desproporção, o Vietcong não foi vencido e esta prestes a vencer.
Na Guiné, o In não é tão bom combatente como o Vietcong e o apoio externo que tem recebido, agora importante, não se compara com o que a Rússia e a China concedem ao Vietcong. Essas são as duas principais diferenças que notamos. Aliás, em parte compensada pela deficiência dos nossos efectivos, do nosso armamento, da nossa instrução militar, do nosso apoio aéreo e naval.

Para podermos dominar a guerrilha na Guiné precisaríamos triplicar, pelo menos, os efectivos agora existentes nos três ramos das forças armadas. E mesmo assim ficaríamos longe da proporção viet-namita (que não foi suficiente, note-se, para se obter a vitória militar). Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6? o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco.

Eu bem sei que quem não conhece o mato da Guiné, nem as dificuldades deste tipo de guerra, sente-se inclinado a considerar exageradas as minhas palavras. Infelizmente, tenho a certeza do que afirmo. Deixou-se o In inchar demais para se poder agora desalojá-lo com os meios que temos.

Esta afirmação pode parecer chocante, em especial para as pessoas que não conhecem o assunto com a profundidade que eu conheço. E com certeza que não me acarretará simpatias ou louvores, em especial por parte das pessoas que só gostam de ouvir aquilo que lhes agrade. É evidente que eu ficaria muito mais bem visto se traçasse o quadro da situação militar na Guiné, muito mais optimista, ainda que menos verdadeiro. Talvez até fosse louvado se afirmasse que a guerra na Guiné, tendo chegado ao ponto a que chegou, se pode vencer no campo militar e sem grande dificuldade.

Mas isso não o faço eu, até porque a euforia duraria pouco e seria, em breve, desmentido pelos factos. Eu desejo salientar que só pode mostrar-se optimista a quem conhecer a guerra da Guiné apenas do seu gabinete ou da sala de operações. Eu desejo afirmar que não estou imbuído de qualquer senti-mento derrotista. Continuo a demonstrá-lo no mato, mantendo uma actividade ofensiva a que não poupo os meus subordinados nem me poupo a mim. Mas o que acho é que chegou a altura de se dizer a verdade. E a verdade é que, na Guiné, estamos apenas aguentando a situação. Estamos à espera que o In adquira suficiente estrutura e capacidade militar para correr connosco. Limitamo-nos a espicaçá-lo e ao de leve. Mostramo-nos incapazes de o desalojar definitivamente seja de que área for.

E tudo isto porque não temos meios nem efectivos militares adequados e suficientes.
Mas ainda que os tivéssemos e que conseguíssemos empurrar o In em todas as frentes, até às fronteiras, que faríamos depois? Como conseguiríamos evitar novas infiltrações enquanto o Senegal e a República da Guiné derem a ajuda que dão ao PAIGC9 . A guerra no Vietname ensina-nos que o bombardeamento do Senegal ou do República da Guiné não resolveria o problema, pelo contrário, complicá-lo-ia. E isto porque o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político, a guerra na Guiné só pode acabar se Portugal conseguir convencer o Senegal e a República da Guiné deixarem de auxiliar o PAIGC ou qualquer outro movimento cujo objectivo seja independência da Guiné-Bissau.

Não nos parece, porém, que em face da mentalidade internacional agora vigente, alguém bem informado considere possível Senegal ou a República da Guiné apoiarem a nossa política ultramarina. Porque só apoiando essa política os governos de Dakar e Conakry poderiam suspender o auxílio ao PAIGC.

Guiné 63/74 - CCCLII: Os poetas da Guiné-Bissau (1): Julião Soares Sousa

Selecção de Jorge Santos.

Autor: Julião Soares Sousa

CANTOS DO MEU PAÍS

Canto as mãos que foram escravas
nas galés
corpos acorrentados a chicote
nas américas

Canto cantos tristes
do meu País
cansado de esperar
a chuva que tarda a chegar

Canto a Pátria moribunda
que abandonou a luta
calou seus gritos
mas não domou suas esperanças

Canto as horas amargas
de silêncio profundo
cantos que vêm da raiz
de outro mundo
estes grilhões que ainda detêm
a marcha do meu País

In: "Um Novo Amanhecer". Coimbra: Livraria Minerva.1996.

Nota encontrada na Net sobre o autor:

"The author is a native of Bula, República da Guiné-Bissau. In 1990 he contributed to the review A Gália of the Associação Galaico-portuguesa da Língua (Santiago), and the newspaper A cabra. He has also contributed poetry to Journal da Maia. At the time these poems were published the author was Coordenador Geral do Grupo de Reflexão e Debate / África, located in Coimbra. A student of history specializing in Portuguese expansion, he was active in the Estudantina Universitária de Coimbra from 1992".

Fonte: RICHARD C. RAMER > Old & Rare Books > RECENT PORTUGUESE PUBLICATIONS BULLETIN 19 > October 1999

Guiné 63/74 - CCCLII: Os poetas da Guiné-Bissau (1): Julião Soares Sousa

Selecção de Jorge Santos.

Autor: Julião Soares Sousa

CANTOS DO MEU PAÍS

Canto as mãos que foram escravas
nas galés
corpos acorrentados a chicote
nas américas

Canto cantos tristes
do meu País
cansado de esperar
a chuva que tarda a chegar

Canto a Pátria moribunda
que abandonou a luta
calou seus gritos
mas não domou suas esperanças

Canto as horas amargas
de silêncio profundo
cantos que vêm da raiz
de outro mundo
estes grilhões que ainda detêm
a marcha do meu País

In: "Um Novo Amanhecer". Coimbra: Livraria Minerva.1996.

Nota encontrada na Net sobre o autor:

"The author is a native of Bula, República da Guiné-Bissau. In 1990 he contributed to the review A Gália of the Associação Galaico-portuguesa da Língua (Santiago), and the newspaper A cabra. He has also contributed poetry to Journal da Maia. At the time these poems were published the author was Coordenador Geral do Grupo de Reflexão e Debate / África, located in Coimbra. A student of history specializing in Portuguese expansion, he was active in the Estudantina Universitária de Coimbra from 1992".

Fonte: RICHARD C. RAMER > Old & Rare Books > RECENT PORTUGUESE PUBLICATIONS BULLETIN 19 > October 1999

Guiné 63/74 - CCCLI: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (2) (João Tunes)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:

Um dos grupos de combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . De pé, na terceira fila, os furriéis milicianos António Levezinho e Humberto Reis, membros da nossa tertúlia. Os soldados, do recrutamento local, eram fulas e futa-fulas. Estes, em geral distinguiam-se dos restantes pela sua elevada estatura. A CCAÇ 12 fazia parte da "nova força africana" e, por sugestão do próprio Spínola, ficou afecta à Zona Leste (que correspondia, grosso modo, ao chão fula).

© António Levezinho (2005)



Camarada Luís, nosso Cmdt em Chefe do "Nosso Blogue",

Li com toda a atenção o texto do nosso camarada José Neto sobre a questão da diferenciação/divisão étnica. Penso que percebi a intenção nobre das suas palavras. Sobretudo sábias quando relativiza, e muito bem, a constituição de qualquer forma de hierarquizar superioridades ou inferioridades étnicas. Mas julgo que não me será levado a mal se disser que, no essencial, respeitando e admirando o seu espírito pacificador, discordo dele. Sobretudo, quando diz:

"É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus", "os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum. Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar"."

A diversidade étnica da Guiné, tendo para mais em conta o elevadíssimo número de etnias concentradas num pequeno território, é um problema, mas também um bem. Um mal, porque é favorável, ainda nas suas condições sócio-económicas locais, mais à divisão e aos egoímos do que à consolidação da unidade nacional. Um bem, na medida em que enriquece o mosaico cultural e usos e costumes da Guiné e exprime a força das persistências culturais e sociais das várias etnias ali presentes e que souberam, face à ocupação militar portuguesa e á proximidade de etnias muito diferentes, preservar as suas culturas e os seus hábitos.

E julgo que o "milagre" desta permanência de vizinhanças, mantendo-se intocáveis as endogenias próprias de cada etnia, foi possível pela conjugação de dois factores - a unificação de salvaguarda perante o ocupante europeu (quando ele existiu); o país ser pobre (não propício a processos de acumulação capitalista e á consequente estratificação social) e, simultaneamente, o terreno ser de tal forma fértil que os mais desvalidos não correm o risco de serem derrotados pela fome (a doença é o grande "exterminador").

O fim da ocupação portuguesa levou os guineenses a terem de resolver, entre si, dois problemas (novos mas que já existiam no seio da guerrilha):

- Por um lado, a questão dos "caboverdianos", cuja supremacia, pela sua escolarização, se manifestava - no lado colonial - pela sua ocupação dos lugares administrativos do aparelho de domínio colonial, e, na guerrilha, por ocuparem os maiores lugares de destaque entre os quadros destacados do PAIGC e, na altura da independência, serem os com melhores condições para substituírem os portugueses nos comandos do aparelho do Estado. Sabe-se como o problema foi "resolvido".

- Segundo, como, "resolvido" o primeiro, se iam arrumar as várias etnias em termos de prevalência social, contando aqui a superioridade numérica forte de uma das etnias (com um correspondente peso no aparelho militar) face a outras, com hábitos e tradições de se auto-atribuírem finalidades aristocráticas na escala de valores infra-africanas. Ao mesmo tempo que tinham de se entender com a afirmação virgem de um espírito de unidade nacional, por si próprios, desaparecido que foram os factores "unificadores" quer da oposição ao ocupante colonial e, depois, liquidada a "supremacia caboverdiana".

O domínio colonial tudo fez, dividir para reinar, para explorar e acirrar os conflitos infra-guineenses. A "psico" tentava virar as populações indígenas e os guerrilheiros contra os "chefes caboverdianos" do PAIGC; dava um claro favorecimento às etnias islamizadas (sobretudo, os fulas) por considerar que, por via dessa influência religiosa, seriam mais relapsos a aceitarem os fundamentos ideológicos do PAIGC, com maior capacidade de penetrarem no comunitarismo próprio das etnias de cultura animista (e não foi por acaso que o PAIGC penetrou mais profundamente nas regiões balantas e menos nas regiões fulas).

Entretanto, o assassinato de Amílcar Cabral, com as batutas e os dedos da Pide e de Spínola, foi possível como fruto das divisões inter-étnicas e da aversão aos caboverdianos que a "psico" conseguiu transportar para o campo inimigo. Uma das nossas heranças que ficaram na Guiné, foi essa.

A unidade nacional não se decide nem se decreta. É mais uma questão de tempo que de vontade. E de condições sociais, políticas, culturais e económicas, umas objectivas e outras subjectivas. O exemplo da "uniformidade" portuguesa, que o camarada José Neto invoca, não colhe, porque uma excepção nunca vale para valer como regra. Olhe-se aqui, para o lado, para os espanhóis. Para os belgas, os suíços, os franceses, os da Grã-Bretanha, os italianos, os jugoslavos, por aí fora. E como é nada (tirando a moeda e a liberdade de circulação de pessoas e mercadorias) a identidade e a unidade europeias.

Portugal, no quadro europeu, por razões que se podem discutir mas que levavam a uma outra conversa larga, é um caso quase único, verdadeiramente excepcional, beneficando da uniformidade longeva das fronteiras e do expansionismo ultramarino e migratório que aliviou tensões internas. E se o caso português não serve como exemplo para a Europa, como podia funcionar para África? Quando, exactamente, a herança que lá deixámos foi a do acirrar rivalidades para impedir o espírito de unidade nacional que nos era um factor adverso (em termos de domínio colonial e de actuação militar) e uma pedra de toque da ideologia independentista?

Voltando ao bem que é a riqueza da diferenciação étnica da Guiné. Se for possível, não sei se é, nem sei se não é, seria óptimo para os guineenses e para o mundo, que em vez de um quadro uniforme de africanos engravatados, de pasta numa mão, computador na outra e telemóvel ao ouvido, eles não perdessem a sua enorme e polifacetada riqueza cultural das suas diversidades e raízes.

De qualquer forma, tudo o que se faça para um povo se "alhear" das suas realidades, imprimindo-lhe uma uniformidade não aceite, é chover no molhado. É adiar e agravar o problema. Que só é problema se não for sublimado culturalmente e quiser serresolvido pela força das armas (o que, infelizmente, tem acontecido vezes demais). De qualquer forma, é um problema (até de soberania cultural) que só os guineenses devem e podem resolver.

Nós, portugueses, não temos nada para "ajudar" (deixámos maus exemplos e péssimas heranças, não temos "psico" para ajudar á festa). Persistir na ideia de "ajudar os guineenses" a resolver os seus problemas políticos é, parece-me ser, um paternalismo retardado. Perdemos essa oportunidade nos séculos que lá estivemos, e em vez disso, trouxemos escravos e o amendoim, dividimos e metralhámos. Agora, resta cooperar e confiar na sua capacidade de que resolvam, entre si, os seus problemas de diferenças. Desejando-lhes o melhor, é claro.

Abraços a todos os camaradas tertulianos.

João Tunes

Guiné 63/74 - CCCLI: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (2) (João Tunes)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:

Um dos grupos de combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . De pé, na terceira fila, os furriéis milicianos António Levezinho e Humberto Reis, membros da nossa tertúlia. Os soldados, do recrutamento local, eram fulas e futa-fulas. Estes, em geral distinguiam-se dos restantes pela sua elevada estatura. A CCAÇ 12 fazia parte da "nova força africana" e, por sugestão do próprio Spínola, ficou afecta à Zona Leste (que correspondia, grosso modo, ao chão fula).

© António Levezinho (2005)



Camarada Luís, nosso Cmdt em Chefe do "Nosso Blogue",

Li com toda a atenção o texto do nosso camarada José Neto sobre a questão da diferenciação/divisão étnica. Penso que percebi a intenção nobre das suas palavras. Sobretudo sábias quando relativiza, e muito bem, a constituição de qualquer forma de hierarquizar superioridades ou inferioridades étnicas. Mas julgo que não me será levado a mal se disser que, no essencial, respeitando e admirando o seu espírito pacificador, discordo dele. Sobretudo, quando diz:

"É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus", "os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum. Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar"."

A diversidade étnica da Guiné, tendo para mais em conta o elevadíssimo número de etnias concentradas num pequeno território, é um problema, mas também um bem. Um mal, porque é favorável, ainda nas suas condições sócio-económicas locais, mais à divisão e aos egoímos do que à consolidação da unidade nacional. Um bem, na medida em que enriquece o mosaico cultural e usos e costumes da Guiné e exprime a força das persistências culturais e sociais das várias etnias ali presentes e que souberam, face à ocupação militar portuguesa e á proximidade de etnias muito diferentes, preservar as suas culturas e os seus hábitos.

E julgo que o "milagre" desta permanência de vizinhanças, mantendo-se intocáveis as endogenias próprias de cada etnia, foi possível pela conjugação de dois factores - a unificação de salvaguarda perante o ocupante europeu (quando ele existiu); o país ser pobre (não propício a processos de acumulação capitalista e á consequente estratificação social) e, simultaneamente, o terreno ser de tal forma fértil que os mais desvalidos não correm o risco de serem derrotados pela fome (a doença é o grande "exterminador").

O fim da ocupação portuguesa levou os guineenses a terem de resolver, entre si, dois problemas (novos mas que já existiam no seio da guerrilha):

- Por um lado, a questão dos "caboverdianos", cuja supremacia, pela sua escolarização, se manifestava - no lado colonial - pela sua ocupação dos lugares administrativos do aparelho de domínio colonial, e, na guerrilha, por ocuparem os maiores lugares de destaque entre os quadros destacados do PAIGC e, na altura da independência, serem os com melhores condições para substituírem os portugueses nos comandos do aparelho do Estado. Sabe-se como o problema foi "resolvido".

- Segundo, como, "resolvido" o primeiro, se iam arrumar as várias etnias em termos de prevalência social, contando aqui a superioridade numérica forte de uma das etnias (com um correspondente peso no aparelho militar) face a outras, com hábitos e tradições de se auto-atribuírem finalidades aristocráticas na escala de valores infra-africanas. Ao mesmo tempo que tinham de se entender com a afirmação virgem de um espírito de unidade nacional, por si próprios, desaparecido que foram os factores "unificadores" quer da oposição ao ocupante colonial e, depois, liquidada a "supremacia caboverdiana".

O domínio colonial tudo fez, dividir para reinar, para explorar e acirrar os conflitos infra-guineenses. A "psico" tentava virar as populações indígenas e os guerrilheiros contra os "chefes caboverdianos" do PAIGC; dava um claro favorecimento às etnias islamizadas (sobretudo, os fulas) por considerar que, por via dessa influência religiosa, seriam mais relapsos a aceitarem os fundamentos ideológicos do PAIGC, com maior capacidade de penetrarem no comunitarismo próprio das etnias de cultura animista (e não foi por acaso que o PAIGC penetrou mais profundamente nas regiões balantas e menos nas regiões fulas).

Entretanto, o assassinato de Amílcar Cabral, com as batutas e os dedos da Pide e de Spínola, foi possível como fruto das divisões inter-étnicas e da aversão aos caboverdianos que a "psico" conseguiu transportar para o campo inimigo. Uma das nossas heranças que ficaram na Guiné, foi essa.

A unidade nacional não se decide nem se decreta. É mais uma questão de tempo que de vontade. E de condições sociais, políticas, culturais e económicas, umas objectivas e outras subjectivas. O exemplo da "uniformidade" portuguesa, que o camarada José Neto invoca, não colhe, porque uma excepção nunca vale para valer como regra. Olhe-se aqui, para o lado, para os espanhóis. Para os belgas, os suíços, os franceses, os da Grã-Bretanha, os italianos, os jugoslavos, por aí fora. E como é nada (tirando a moeda e a liberdade de circulação de pessoas e mercadorias) a identidade e a unidade europeias.

Portugal, no quadro europeu, por razões que se podem discutir mas que levavam a uma outra conversa larga, é um caso quase único, verdadeiramente excepcional, beneficando da uniformidade longeva das fronteiras e do expansionismo ultramarino e migratório que aliviou tensões internas. E se o caso português não serve como exemplo para a Europa, como podia funcionar para África? Quando, exactamente, a herança que lá deixámos foi a do acirrar rivalidades para impedir o espírito de unidade nacional que nos era um factor adverso (em termos de domínio colonial e de actuação militar) e uma pedra de toque da ideologia independentista?

Voltando ao bem que é a riqueza da diferenciação étnica da Guiné. Se for possível, não sei se é, nem sei se não é, seria óptimo para os guineenses e para o mundo, que em vez de um quadro uniforme de africanos engravatados, de pasta numa mão, computador na outra e telemóvel ao ouvido, eles não perdessem a sua enorme e polifacetada riqueza cultural das suas diversidades e raízes.

De qualquer forma, tudo o que se faça para um povo se "alhear" das suas realidades, imprimindo-lhe uma uniformidade não aceite, é chover no molhado. É adiar e agravar o problema. Que só é problema se não for sublimado culturalmente e quiser serresolvido pela força das armas (o que, infelizmente, tem acontecido vezes demais). De qualquer forma, é um problema (até de soberania cultural) que só os guineenses devem e podem resolver.

Nós, portugueses, não temos nada para "ajudar" (deixámos maus exemplos e péssimas heranças, não temos "psico" para ajudar á festa). Persistir na ideia de "ajudar os guineenses" a resolver os seus problemas políticos é, parece-me ser, um paternalismo retardado. Perdemos essa oportunidade nos séculos que lá estivemos, e em vez disso, trouxemos escravos e o amendoim, dividimos e metralhámos. Agora, resta cooperar e confiar na sua capacidade de que resolvam, entre si, os seus problemas de diferenças. Desejando-lhes o melhor, é claro.

Abraços a todos os camaradas tertulianos.

João Tunes

Guiné 63/74 - CCCL: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (1) (A. Marques Lopes)

Guiné > Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > "Os Jagudis", o grupo de combate do Alferes Lopes :

"Na altura, o General Spínola deu indicação para se dividir a companhia em pelotões de acordo com as etnias (o tirar partido das rivalidades entre eles). Como eu era o alferes mais antigo, o comandante da companhia perguntou-me o que é que eu queria: 'Quero os balantas', disse eu. E o meu grupo de combate foi quase todo de balantas (tinha um cabo fula, o Mamadu, e três furriéis brancos, além de mim). Ouviam a rádio do PAIGC mas demo-nos sempre bem. Porque eu sempre fiz por isso. Por exemplo: um dia, fui com um que estava doente através da mata até Bigene, porque em Barro não havia médico; emprestei dinheiro a todos, mas todos me pagaram quando me vim embora"...

© A. Marques Lopes (2005).



Caros camaradas:

Percebo as intenções daquela monografia do EME- Estado Maior do Exército que o Sousa de Castro (1) nos trouxe ao conhecimento (as intenções do EME , as do nosso camarada também sei que foi o seu inestimável papel de informação de todos nós sobre como as coisas eram e como se gizaram para nos fazer estar lá): foi, com certeza um documento que chegou aos escalões superiores, não creio que tenha chegado aos alferes nem aos outros, pelo menos nunca tive informação de nada do género (eu não estava em 1971, mas é natural que tivesse havido mais coisas idênticas...).

Era o elemento para o trabalho psicológico dos mais responsáveis, para a sua actuação junto da população, para o tratamento e saber que partido tirar junto de cada etnia. Não vejo mal nisso como método, pelo contrário, acho que eram fundamentais acções desse género, é dos livros: há que conhecer o meio em que nos movemos.

De um modo geral estou de acordo com o documento, sobretudo nos aspectos da organização sociológica de cada etnia, dos usos e costumes de cada uma, das vivências e relaçõe internas, do passado e conflitos históricos entre elas. Creio que tudo isso foi tirado de trabalhos de investigadores e historiadores da época mais remota do colonialismo. E seria assim na altura, não tenho dúvidas.

Já as tenho quando se transmitiu, intencional ou intencionalmente, não sei, ideias já não acertadas, em minha opinião, sobre o comportamento individual dos elementos de cada etnia. Possivelmente, a transmissão dessas ideias, vindas do colonialismo antigo, não teve em conta que durante os anos da guerra alguma coisa mudou no comportamento das populações, que pela situação em si quer pela própria acção político-pedagógica do PAIGC. Transmitiram-se, como diz o Luís Graça, alguns estereótipos já não consentâneos com a realidade.

Alguns exemplos da minha experiência:

- como já vos disse num dos meus posts anteriores, dos mais antigos, quando me foi dado escolher, escolhi os balantas para o meu pelotão em Barro; porque sabia que trabalhavam de sol a sol nas bolanhas, uma práctica adquirida nos tempos em que foram escravizados pelas etnias islamizadas, ainda antes da chegada dos portugueses à Guiné, eram esforçados trabalhadores; porque sabia da sua frontalidade, se gostassem de mim mostravam, se não gostassem eu também o veria - mas gostaram de mim; ladrões? também ouvi falar nisso, e não digo que não seja essa a sua tradição "com a consciência de um acto não criminoso", como diz a monografia, no entanto, também vos contei num post anterior, emprestei dinheiro a todos quando estive em Barro e, quando me vim embora, todos me pagaram - certamente uma situação diferente da "manifestação de perícia própria da tribo";

- mas tinha no meu pelotão um cabo fula, o único, o Mamadu, um grande amigo meu e amigo de todos, na paz e na guerra; o Lamine Turé, um guineense do meu pelotão em Geba, era fula e grande guerreiro, ficou ferido quando eu o fui; preguiçosos, os fulas? penso que se referem, sem explicações, à situação decorrente dos cânones da sua religião: o homem manda, tem profissões dignas (ourives, ferreiro...), a mulher trabalha no campo (na bolanha...), por isso eles estão à porta da morança, na sua arte, ou a falar e a jogar, e a mulher (ou mulheres) a trabalhar;

- quanto aos felupes, Susana, Varela e também da zona de S. Domingos, entrando pelo Senegal, é verdade que eram conhecidos por terem hábitos guerreiros característicos: cortavam a cabeça do inimigo, seccionavam a calote superior do crâneo e bebiam por aí o sangue do morto, como forma de adquirirem as suas potencialidades; com arco e flechas, alguns dos incluídos nas tropas portuguesas eram mais temíveis em acção do que com G3; quanto a casamentos, a felupe que casou com Luís Cabral (caboverdeano) deve, então, ter cometido uma "falta muito grave"...

Há diferenças, evidentemente, e por alguma razão tem havido acusações de tribalismo em várias situações conturbadas da Guiné-Bissau. O próprio Amilcar Cabral escalpelizou essas diferenças no livro "Unidade e Luta" e apontou caminhos para o seu encontro.

De um modo geral, acho que aquela monografia dá uma ideia, para quem não sabe nada. Terá sido esse o objectivo.

A. Marques Lopes

__________

(1) E-mail posterior (9.12.2005) do Sousa de Castro: "Não há dúvida nenhuma que a minha intenção foi informar a tertúlia do que se escrevia na época, nem me incomoda se alguns tertulianos estão de acordo ou não, nem tenho conhecimento nem vivência para poder opinar sobre esta pequena monografia. Esta brochura foi distribuída a todos os combatentes que embarcaram, em Janeiro de 1971, mas não me recordo se foi no RAP 2 ou nos ADIDOS em Lisboa. De qual quer modo dentro de algum tempo vou enviar mais um capítulo desta pequena monografia".

Guiné 63/74 - CCCL: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (1) (A. Marques Lopes)

Guiné > Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > "Os Jagudis", o grupo de combate do Alferes Lopes :

"Na altura, o General Spínola deu indicação para se dividir a companhia em pelotões de acordo com as etnias (o tirar partido das rivalidades entre eles). Como eu era o alferes mais antigo, o comandante da companhia perguntou-me o que é que eu queria: 'Quero os balantas', disse eu. E o meu grupo de combate foi quase todo de balantas (tinha um cabo fula, o Mamadu, e três furriéis brancos, além de mim). Ouviam a rádio do PAIGC mas demo-nos sempre bem. Porque eu sempre fiz por isso. Por exemplo: um dia, fui com um que estava doente através da mata até Bigene, porque em Barro não havia médico; emprestei dinheiro a todos, mas todos me pagaram quando me vim embora"...

© A. Marques Lopes (2005).



Caros camaradas:

Percebo as intenções daquela monografia do EME- Estado Maior do Exército que o Sousa de Castro (1) nos trouxe ao conhecimento (as intenções do EME , as do nosso camarada também sei que foi o seu inestimável papel de informação de todos nós sobre como as coisas eram e como se gizaram para nos fazer estar lá): foi, com certeza um documento que chegou aos escalões superiores, não creio que tenha chegado aos alferes nem aos outros, pelo menos nunca tive informação de nada do género (eu não estava em 1971, mas é natural que tivesse havido mais coisas idênticas...).

Era o elemento para o trabalho psicológico dos mais responsáveis, para a sua actuação junto da população, para o tratamento e saber que partido tirar junto de cada etnia. Não vejo mal nisso como método, pelo contrário, acho que eram fundamentais acções desse género, é dos livros: há que conhecer o meio em que nos movemos.

De um modo geral estou de acordo com o documento, sobretudo nos aspectos da organização sociológica de cada etnia, dos usos e costumes de cada uma, das vivências e relaçõe internas, do passado e conflitos históricos entre elas. Creio que tudo isso foi tirado de trabalhos de investigadores e historiadores da época mais remota do colonialismo. E seria assim na altura, não tenho dúvidas.

Já as tenho quando se transmitiu, intencional ou intencionalmente, não sei, ideias já não acertadas, em minha opinião, sobre o comportamento individual dos elementos de cada etnia. Possivelmente, a transmissão dessas ideias, vindas do colonialismo antigo, não teve em conta que durante os anos da guerra alguma coisa mudou no comportamento das populações, que pela situação em si quer pela própria acção político-pedagógica do PAIGC. Transmitiram-se, como diz o Luís Graça, alguns estereótipos já não consentâneos com a realidade.

Alguns exemplos da minha experiência:

- como já vos disse num dos meus posts anteriores, dos mais antigos, quando me foi dado escolher, escolhi os balantas para o meu pelotão em Barro; porque sabia que trabalhavam de sol a sol nas bolanhas, uma práctica adquirida nos tempos em que foram escravizados pelas etnias islamizadas, ainda antes da chegada dos portugueses à Guiné, eram esforçados trabalhadores; porque sabia da sua frontalidade, se gostassem de mim mostravam, se não gostassem eu também o veria - mas gostaram de mim; ladrões? também ouvi falar nisso, e não digo que não seja essa a sua tradição "com a consciência de um acto não criminoso", como diz a monografia, no entanto, também vos contei num post anterior, emprestei dinheiro a todos quando estive em Barro e, quando me vim embora, todos me pagaram - certamente uma situação diferente da "manifestação de perícia própria da tribo";

- mas tinha no meu pelotão um cabo fula, o único, o Mamadu, um grande amigo meu e amigo de todos, na paz e na guerra; o Lamine Turé, um guineense do meu pelotão em Geba, era fula e grande guerreiro, ficou ferido quando eu o fui; preguiçosos, os fulas? penso que se referem, sem explicações, à situação decorrente dos cânones da sua religião: o homem manda, tem profissões dignas (ourives, ferreiro...), a mulher trabalha no campo (na bolanha...), por isso eles estão à porta da morança, na sua arte, ou a falar e a jogar, e a mulher (ou mulheres) a trabalhar;

- quanto aos felupes, Susana, Varela e também da zona de S. Domingos, entrando pelo Senegal, é verdade que eram conhecidos por terem hábitos guerreiros característicos: cortavam a cabeça do inimigo, seccionavam a calote superior do crâneo e bebiam por aí o sangue do morto, como forma de adquirirem as suas potencialidades; com arco e flechas, alguns dos incluídos nas tropas portuguesas eram mais temíveis em acção do que com G3; quanto a casamentos, a felupe que casou com Luís Cabral (caboverdeano) deve, então, ter cometido uma "falta muito grave"...

Há diferenças, evidentemente, e por alguma razão tem havido acusações de tribalismo em várias situações conturbadas da Guiné-Bissau. O próprio Amilcar Cabral escalpelizou essas diferenças no livro "Unidade e Luta" e apontou caminhos para o seu encontro.

De um modo geral, acho que aquela monografia dá uma ideia, para quem não sabe nada. Terá sido esse o objectivo.

A. Marques Lopes

__________

(1) E-mail posterior (9.12.2005) do Sousa de Castro: "Não há dúvida nenhuma que a minha intenção foi informar a tertúlia do que se escrevia na época, nem me incomoda se alguns tertulianos estão de acordo ou não, nem tenho conhecimento nem vivência para poder opinar sobre esta pequena monografia. Esta brochura foi distribuída a todos os combatentes que embarcaram, em Janeiro de 1971, mas não me recordo se foi no RAP 2 ou nos ADIDOS em Lisboa. De qual quer modo dentro de algum tempo vou enviar mais um capítulo desta pequena monografia".

08 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCXLIX: Do PEL CAÇ NAT 51 aos demónios étnicos que atormentam o povo da Guiné (Zé Neto)

1. Texto do nosso amigo e camarada José Neto (2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68; hoje capitão reformado):

Meu caro amigo Luis Graça:

Acabo de ler o arrazoado sobre Manjacos, Felupes e por aí fora. E chamo-lhe arrazoado pelo seguinte:

Muito cedo, aos 21 anos, fui para Macau como Soldado de Artilharia. Naquela cidade maravilhosa adquiri instrução e aprendi a conviver com pessoas que tinham da vida uma visão diferente da que me fora ensinada. Note que, ao tempo, da guarnição faziam parte dois Batalhões de Moçambicanos, que entre si se denominavam por Landins e Macuas. Dizia-se que eram rivais em África, mas ali eram militares e apenas disputavam o aprumo com que serviam o Exército Português.

Vim de Macau (empurrado pelos Decretos) dez anos depois, com o posto de 2º sargento, casado com a filha dum camarada (metropolitano), uma filha com 17 meses e uma riqueza interior que, modéstia à parte, não encontrei na generalidade dos meus camaradas de cá.

Quatro meses depois (1962) avancei (...em força) para Cabinda e lá encontrei os Cabindas e os Mossorongos. Diferentes... iguais, isso nunca me incomodou.

Em fins de 1966 calhou-me a Guiné.

Em 1970 aí vai o seu amigo para Angola, já 1º sargento e aprovado para ir ao Curso de Oficiais em Águeda (ECS). Em Calunda, que fica naquele pequeno rectângulo que o mapa de Angola tem à direita, encontrei de tudo. Numa tribo mandavam os homens, noutra as mulheres, uns eram indolentes, outros diligentes, enfim a África era assim. E agora apetece-me perguntar: E a Europa é diferente?

Voltemos à Guiné.

Ali só privei com Fulas, de Buba, Colibuia, Cumbijã e Guilege (Guiledje). Islamisados, inteligentes, sobrevivendo com muito engenho e, principalmente, de sorriso aberto e franco.

Tive o privilégio de, com o meu Capítão (Eurico de Deus Corvacho), ser recebido, em Aldeia Formosa, pelo senhor Cherno Rachide, o chefe espiritual daquela zona que se estendia para além da fonteira (1).

Fiquei impressionadíssimo com o porte e as palavras sábias que nos dispensou. Na despedida apenas nos disse (em francês!!!): "Procurem não maltratar o meu povo".

Em Guilege fui amigo (repito: "amigo") do Régulo porque tinhamos um traço comum: Ele também esteve em Macau, fazendo parte (como soldado) duma companhia guineeense para ali destacada no fim da II Guerra Mundial. Era um chefe inteligente e de poucas palavras.

E também tive em Guilege uma "caldeirada" chamada Pelotão de Caçadores Nativos nº 51. Era comandado por um Alferes Miliciano (Perneco) e os furriéis e cabos eram metropolitanos. Eram cerca de trinta soldados de várias etnias (cá estão as malfadadas etnias) e criavam-nos mais problemas que os duzentos e tal transmontanos, minhotos, beirões e algarvios. Esquecia-me que também tínhamos três alentejanos.

Aquele Pelotão era uma pequena amostra do que é hoje a República da Guiné Bissau.

E por fim a minha opinião: É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus, os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum.

Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar".

Cumprimentos do
Zé Neto.

__________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)



(2) Que dizer deste comentário de um homem vivido e sábio como o Zé Neto ? Apenas reforçar a sua sugestão: o que importa são as pessoas... E é com cada um dos guineenses, com a sua individualidade como pessoa, que a Guiné-Bissau vai construindo o seu futuro e ainda vai ser um grande país... Aqui fazemos força por isso. L.G.

Guiné 63/74 - CCCXLIX: Do PEL CAÇ NAT 51 aos demónios étnicos que atormentam o povo da Guiné (Zé Neto)

1. Texto do nosso amigo e camarada José Neto (2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68; hoje capitão reformado):

Meu caro amigo Luis Graça:

Acabo de ler o arrazoado sobre Manjacos, Felupes e por aí fora. E chamo-lhe arrazoado pelo seguinte:

Muito cedo, aos 21 anos, fui para Macau como Soldado de Artilharia. Naquela cidade maravilhosa adquiri instrução e aprendi a conviver com pessoas que tinham da vida uma visão diferente da que me fora ensinada. Note que, ao tempo, da guarnição faziam parte dois Batalhões de Moçambicanos, que entre si se denominavam por Landins e Macuas. Dizia-se que eram rivais em África, mas ali eram militares e apenas disputavam o aprumo com que serviam o Exército Português.

Vim de Macau (empurrado pelos Decretos) dez anos depois, com o posto de 2º sargento, casado com a filha dum camarada (metropolitano), uma filha com 17 meses e uma riqueza interior que, modéstia à parte, não encontrei na generalidade dos meus camaradas de cá.

Quatro meses depois (1962) avancei (...em força) para Cabinda e lá encontrei os Cabindas e os Mossorongos. Diferentes... iguais, isso nunca me incomodou.

Em fins de 1966 calhou-me a Guiné.

Em 1970 aí vai o seu amigo para Angola, já 1º sargento e aprovado para ir ao Curso de Oficiais em Águeda (ECS). Em Calunda, que fica naquele pequeno rectângulo que o mapa de Angola tem à direita, encontrei de tudo. Numa tribo mandavam os homens, noutra as mulheres, uns eram indolentes, outros diligentes, enfim a África era assim. E agora apetece-me perguntar: E a Europa é diferente?

Voltemos à Guiné.

Ali só privei com Fulas, de Buba, Colibuia, Cumbijã e Guilege (Guiledje). Islamisados, inteligentes, sobrevivendo com muito engenho e, principalmente, de sorriso aberto e franco.

Tive o privilégio de, com o meu Capítão (Eurico de Deus Corvacho), ser recebido, em Aldeia Formosa, pelo senhor Cherno Rachide, o chefe espiritual daquela zona que se estendia para além da fonteira (1).

Fiquei impressionadíssimo com o porte e as palavras sábias que nos dispensou. Na despedida apenas nos disse (em francês!!!): "Procurem não maltratar o meu povo".

Em Guilege fui amigo (repito: "amigo") do Régulo porque tinhamos um traço comum: Ele também esteve em Macau, fazendo parte (como soldado) duma companhia guineeense para ali destacada no fim da II Guerra Mundial. Era um chefe inteligente e de poucas palavras.

E também tive em Guilege uma "caldeirada" chamada Pelotão de Caçadores Nativos nº 51. Era comandado por um Alferes Miliciano (Perneco) e os furriéis e cabos eram metropolitanos. Eram cerca de trinta soldados de várias etnias (cá estão as malfadadas etnias) e criavam-nos mais problemas que os duzentos e tal transmontanos, minhotos, beirões e algarvios. Esquecia-me que também tínhamos três alentejanos.

Aquele Pelotão era uma pequena amostra do que é hoje a República da Guiné Bissau.

E por fim a minha opinião: É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus, os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum.

Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar".

Cumprimentos do
Zé Neto.

__________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)



(2) Que dizer deste comentário de um homem vivido e sábio como o Zé Neto ? Apenas reforçar a sua sugestão: o que importa são as pessoas... E é com cada um dos guineenses, com a sua individualidade como pessoa, que a Guiné-Bissau vai construindo o seu futuro e ainda vai ser um grande país... Aqui fazemos força por isso. L.G.

Guiné 63/74 - CCCXLVIII: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)


Guiné > Zona leste > Bambadinca > 1969 > O ex-furriel miliciano Henriques, atirador de armas pesadas, da CCAÇ 12 (1969/71) : "Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!"...



© Luís Graça (2005)


1. Tenho algumas cartas que fui escrevendo, no meu Diário de um Tuga, dirigidas a amigos, mas que nunca cheguei a pôr no correio. Por lassidão. Por cansaço. Mas também por receio de correr riscos, desnecessários. Nunca soube até que ponto a PIDE/DGS me vigiava, nos vigiava.

Se bem me lembro, eu era o único tuga, da CCAÇ 12, em Bambadinca, que recebia o Notícias da Amadora e o Comércio do Funchal, jornais conotados com a oposição ao regime de Salazar-Caetano. O Marques, por sua vez, recebia a Seara Nova. Não era nenhum crime de lesa-pátria nem punha o regime em perigo. Afinal, eram jornais sujeitos a censura (o exame prévio, que eufemismo!). Circulavam legalmente… e até chegavam à Guiné, pelo serviço postal militar (SPM).

Na época, poucos de nós se interessavam por política. De resto, quem se interessava por política era do reviralho, alguns grupos e grupúsculos (intelectuais e estudantis, católicos progressistas, organizações clandestinas, ligadas à esquerda e à extrema-esquerda…). Tínhamos todos nascidos no Estado Novo e sido formatados pelo Estado Novo… Quem se poderia interessar por política ?

Não obstante a efémera primavera marcelista e as mudanças de cosmética no aparelho repressivo, o país começava, perigosamente, a descomprimir-se… A contra-cultura e a contra-ideologia instalavam-se no quotidiano, nas empresas, nas instituições e até nas forças armadas… Era o famoso “espírito dissolvente”, denunciado pelos espíritos mais lúcidos e ultraconservadores do regime.

Chegavam-me, à Guiné, alguns ecos dos movimentos estudantis e as lutas operárias de 1969… Era preciso ler as notícias nas entrelinhas. De qualquer modo, começava-se a perder as ilusões sobre a natureza do regime, sob o consulado de Marcelo Caetano (que tinha estado na Guiné em Abril de 1969). E alguns de nós começavam a ter a consciência do beco sem saída a que nos conduzia a guerra colonial. Na campanha eleitoral de Outubro de 1969, a oposição ao regime defende o direito à autodeterminação das colónias… Em 1966, eu já lutava por fim da guerra, mas sabia que lá iria parar, a Angola, a Moçambique ou à Guiné… Em 1969 eu deveria ser dos poucos militares, em Bambandica, que estava recenseado, tendo inclusive exercido o meu direito de voto… Eu, o meu capitão e poucos mais…

Sempre fui um outsider. Não estava ligado a nenhuma rede ou organização política da chamada oposição democrática. Por me manifestar, a título individual, contra a guerra colonial e expressar as minhas simpatias pelo PAIGC, chamavam-me o Soviético. A alcunha foi-me posta, creio eu, pelo Sargento Piça, o sargento mais bacano que eu conheci na tropa. Uma amizade feita de muitas cumplicidades e muitos copos. Era o nosso pai e o irmão mais velho. Devia andar pelos seus 37 anos, tantos quantos os do nosso capitão Brito, militar de carreira, um bom homem…

2. Publico hoje uma carta que escrevi, de Bissau, a um dos meus amigos... Ao fim de nove meses de comissão, desenfiei-me e fui até Bissau. Tínhamos uma espécie de acordo tácito, nós, os milicianos e o sargento Piça, que nos arranjava a guia de marcha. Todos os pretextos era bons, médicos ou não médicos, para se fugir do Vietname: o mais vulgar, era “ir Bissau mudar o óleo” (sic), tratar dos dentes, marcar a tão sonhada viagem de férias à Metrópole, enfim, beber uns copos, espairecer as ideias…

Tínhamos chegado à Guiné em finais de Maio de 1969. Ao fim de menos de nove meses, era já precária a nossa saúde física e mental… Trinta e cinco anos depois, posso revelar a quem era destinada a carta que nunca chegou ao seu destino: era para o meu camarada e grande amigo Levezinho, o Tony Levezinho, furriel miliciano como eu na CCAÇ 12…

O Tony fez há dias 58 anos, no dia 24 de Novembro, no seu retiro algarvio, lá para os lados de Sagres… É uma surpresa que eu lhe faço, mesmo que ele estranhe o tom desta carta… É também um pequeno gesto de homenagem e de amizade, para com ele e a Isabel que eu , na época, só conhecia de fotografia. O Tony veio de férias à Metrópole, e casou, a meio da comissão, deixando a pobre Isabel candidata a viúva... Bom, ele nunca suspeitaria da existência desta carta que eu, pela minha parte, imaginei mandar-lhe como se ele estivesse na… Metrópole, longe do Vietname

É uma carta insólita para um camarada, no sentido etimológico do termo: o que dorme no mesmo quarto, na mesma camarata… Devo dizer que já não me recordo de quantos dias andei desenfiado em Bissau, longe do Vietname.. Possivelmente uma semana, não mais… O Levezinho conhecia Bissau, tão bem ou tão mal como eu…Neste acaso, utilizei-o apenas como um simples interlocutor imaginário para uma conversa imaginária… Em condições normais, em Bambadinca, eu nunca faria (in)confidências deste género. Por pudor, simplesmente por pudor.

Este texto está datado, vale o que vale e algumas das suas expressões mais duras podem ferir, mesmo ainda hoje, algumas sensibilidades… Em resumo, não poderia subscrevê-hoje, tal como foi escrito há trinta e cinco anos… Mesmo assim, apeteceu-me divulgá-lo. Julgo que pode ter algum valor documental.

Espero que os meus amigos e camaradas de tertúlia, a começar pelo Tony, sejam condescendentes comigo.



Diário de um Tuga > Bissau, far from the Vietnam. 10 de Fevereiro de 1970:

Meu caro L.

Gostaria de falar-te de Bissau, cidade lumpen, e da sua morna dolce vita, em termos não propriamente de desencanto mas de desmistificação, a ti que ficaste no Vietname… E com palavras que fossem como ácido sulfúrico na pele!... Receio, porém, que a minha crueldade não chegue a tanto (que a realidade, essa, é requintadamente sádica, grotesca, como as telas de Brueghel ou do Goya!) e que não passe, afinal, de azeda esta carta que daqui te envio, aproveitando o macaréu da minha neurastenia e uns fugazes dias de liberdade vigiada. Daqui, da esplanada do Pelicano, frente ao estuário do Geba, rio tragicamente belo, insubmisso como os povos que habitam as suas margens!...

Bissau revisitada… Devo, antes de mais, confessar-te que, se acaso fugi da Guiné por uns dias, nem por isso deixo de sentir-me perseguido pelo seu fantasma. Sabes como é (ou, pelo menos, deves imaginar): uma incómoda sensação de estado de sítio (que nada tem a ver com a insularidade – aliás, pouca gente sabe que Bissau fica numa ilha), agravada, para quem aqui vegeta, pelos fantasmas dos foguetões que ainda há tempos flagelaram Bolama, a antiga capital colonial…

Bissau, cidade-caserna, cidade-bordel!... Para quê falar-te do tráfego (e do tráfico!) de carne branca sem qualquer carga erótica para lá do fetiche da cor da pele ?! De qualquer modo, o contrabando do sexo é negócio que vai de vento em popa - aqui funcionam as leis do mercado, a procura é muita e a oferta é variável ! – a par da quinquilharia oriental e sobretudo dos produtos nipónicos que ultimamente invadiram os free-shops cá do sítio, desde os Gouveia aos Taufik Saad, para quem o amendoim, o coconote e os panos de chita já foram chão que deu uvas… Enfim, o comércio da guerra e a guerra do comércio, uma parelha que sempre se deu bem em toda a parte!

Para quê falar-te dessas prostitutas que naufragam em todos os portos onde cheire a merda, a morte e a soldadesca, fugidas da miséria das ilhas de Cabo Verde e dessas outras ilhas de Lisboa e do Porto ?! Ou ainda dessas fêmeas, balzaquianas, que os tropas do ar condicionado mandaram vir da Metrópole e que passam, sequestradas, nos Wolkswagen e nos Mercedes pretos, conduzidos por soldados africanos – insólita imagem de jovens eunucos negros, subsaarianos, guardando as velhas odaliscas nos haréns dos sultões das Arábias!...

Guiné-Bissau > Bissau > 1996: Aspecto (degradado) do Pelicano que em 1970 era o melhor café-esplanada de Bissau

© Humberto Reis (2005)


Não suporto, aliás, a visão desse branco asséptico, dessa cor neutra das metropolitanas cujo tom de pele tem qualquer coisas de viscoso como as paredes dos hospitais… Receio até que esteja a tornar-me racista ao contrário ou a caminhar para a misoginia, como aquele prisioneiro que, ao sair de Auschwitz, não conseguiu sequer beijar a mulher porque tinha horror a tudo o que era humano…

Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…

Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”!...

Imagina, pois, Bissau como estância de repouso do guerreiro. Há aqui, de certo, um equívoco, um tremendo equívoco por parte do médico miliciano, que até é um gajo porreiro, capaz de dar umas baixas aos operacionais, não obstante as ameaças veladas do comandante de sector… Mas eu estou farto dos gajos porreiros, como ele, que joga bridge com os cabrões dos oficiais superiores, apostados em ganhar a guerra (leia-se: os próximos galões) à custa de ti, de mim e da nossa tropa-macaca… É que Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!...

De qualquer modo, para além duns furtivos raides ao Pilão, as únicas operações que aqui se realizam ainda são do tipo gastronómico. Enfim, a nossa velha filosofia epicurista segundo a qual o melhor que se leva desta vida é ainda o que se come e o que bebe. Eis-nos, portanto, tristemente reduzidos ao ciclo vegetativo , ou seja, aos camarões, às ostras e às verdianas (sim, por que essas pretas de 1ª, na nossa linguagem machista e racista, também são coisas que se comem!)…

Quanto ao Pilão, como escrever-to ? É a grande tabanca, o grande muceque de Bissau, um verdadeiro gueto, um enorme abcesso putrefacto produzido pelo colonialismo e pela guerra, e onde frequentemente explodem as tensões raciais e étnicas.

O Pilão é o lumpen… Daí as recomendações que te fazem ao chegares aqui - lembras-te ? -, à mistura com histórias mirambolantes, pouco ou nada verosímeis, de cabeças cortadas à catanada:
- Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite. Os gajos são todos turras. E com as verdianas, muito cuidado, menino, que as filhas da puta já nasceram todas esquentadas! - avisou-me um furriel fotocine, no Chez Toi, uma espelunca de 3ª classe com pretensões a night club, onde os tropas de galões dourados redescobrem o gosto civilizado do champagne francês (marado…), bebido com uma pin-up ao colo, como em qualquer bar rasca, de alterne, na Reboleira do J. Pimenta…

Descobri, entretanto, que o gajo – o fotocine – não passava de um proxeneta, nas horas vagas:
- É, claro, se quiseres, tens aqui coisa fina… Pró carote, já se vê..

Trata-se de um safado miliciano, como tantos outros que estão aqui na guerra do ar condicionado, afilhados de padrinhos com boas relações no Terreiro do Paço. Cabrões que conhecem a Guiné au vol d’oiseau, de helicóptero ou de Dornier. Felizardos que passam fins de semana nas praias da Ilha de Bubaque. Gajos para quem Buba ou Bambadinca, Guileje ou Piche são tudo cartões de visita exóticos: apenas sabem vagamente que fica lá no mato, no Vietname, de preferência longe de Bissau…

Quanto ao resto, meu caro, é aquele ritmo burocraticamente febril duma cidadela militar, tradicional reduto da presença dos tugas desde finais do Séc. XVIII, simbolizado no forte da Amura. Há tropa por todo o lado, com particular notoriedade para a tropa especial aqui aquartelada – comandos, paras e fuzos – que entre duas viagens de helicóptero, ou de lancha de desembarque, na ociosidade destes dias e noites escaldantes de Bissau, se pavoneiam pelas esplanadas, de tomates inchados, apalpando o cu das bajudas, olhando por cima do crachat a tropa-macaca ou provocando-se mutuamente, por excesso de adrenalina ou por velhos ressentimentos corporativos…

O tráfego de viaturas e aeronaves é intenso mas só dificilmente nos apercebemos de que Bissau é o centro motor dum país em guerra. O melhor é tu postares à entrada do Hospital Militar e contares os helicópteros que aterram na placa…

À noite, entretanto, c’est le vide: os únicos noctívagos ainda são aqueles que vêm do mato e que sofrem da fobia do arame farpado: é vê-los até às tantas da madrugada, à mesa das esplanadas, empanturrando-se de ostras e de cervejas e contando histórias do mato. Mas em vão o guerreiro, em cura de repouso, busca outra atmosfera em que o oxigénio não esteja carregado das toxinas da angústia e da lassidão… A menos que, no dia seguinte, tenha passagem marcada para a Metrópole… Ele vem da guerra e para a guerra há-de voltar, de avião ou de barco, já que não há praticamente ligações terrestres de Bissau para o resto da Guiné. De qualquer modo, os que vêm do Vietname, ainda são as espécies mais curiosas da fauna humana que vagueia por esta capital-fantasma.

De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos…

A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o Velho como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro, ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel ameaçar executar, in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...

- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!

Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!...

Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda.

Henriques [Luís Graça] (*)
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(*) Ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)