02 fevereiro 2006

Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs Cabos Milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo)

© Mário Dias(2006)




1. Ontem publiquei um texto (que qualifiquei de notável), assinado pelo nosso Mário Dias, sobre o seu relacionamento com o Domingos Ramos, guineense, futuro comandante da guerrilha do PAIGC. Eles estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (Novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (1).

O Mário, como sabem, irá tornar-se comando e, e nessa qualidade, fez a guerra até 1966. Nesse ano regressa à Metrópole, donde tinha saído em 1952, ainda adolescente. No meu texto introdutório, perguntava, com natural e humaníssima curiosidade, "se alguma vez o Mário Dias, enquanto sargento comando, esteve frente a frente com o seu antigo camarada e amigo, que acabaria por morrer, prematuramente, em 1966, em combate, em Madina do Boé" (em circunstâncias, aliás, pouco ou mal conhecidas)...

Ele, Mário Dias, acaba de me responder, nestes termos: "

"Caro Luis: Li os teus comentários sobre o meu post relativo ao Domingos Ramos. Não posso deixar de responder à tua pertinente dúvida sobre se nos teríamos ou não encontrado posteriormente na condição de combatentes em campos opostos. A resposta é: sim.

"Porém, atendendo ao delicado da situação - como é sabido, o PAIGC tinha (e tem) uma disciplina férrea e não pactuava com actos altruistas - resolvi não o divulgar, especialmente tendo em conta que a atitude que ambos tivemos na ocorrência poderá alterar o justo conceito que o Domingos Ramos tem entre os guineenses. Elementos mais radicais e fanáticos, que os há, dentro do PAIGC, não compreenderiam tal atitude. Apenas por isso, não gostaria de ver divulgado no blogue - que chega, e ainda bem, aos nossos amigos da Guiné - o relato do feliz encontro" (...).

A seguir o Mário relata-me esse inusitado (e, necessariamente, dramático) encontro, no sul da Guiné, cinco anos mais tarde, em 1965... Mário Dias, sargento comando do exército dos tugas, Domingos Ramos, comandante dos turras...

2. A minha resposta, imediata, foi a seguinte:

Mário:

Estou em total desacordo contigo neste ponto: acho que tens a obrigação (histórica, moral…) de divulgar este momento (raro, se não único…) em que dois antigos camaradas e amigos se encontram, de armas na mão, em campos opostos... Esta história é fabulosa e diz muito dos grandes seres humanos (e dos grandes profissionais) que vocês eram (e tu continuas a ser, agora paisano)…

Guiné-Bissau > 1975 > Efígie de Domingos Ramos, em nota de banco de 100 pesos (que já não circula hoje)... Herói nacional, morreu em Madina do Boé, em 1966...

Não creio que os fanáticos do PAIGC ou dos teus comandos saibam entender estas coisas da grandeza da alma... Que faria o Domingos Ramos, se fosse vivo ? Morreria com este segredo ? Eu acho que esta história já não te pertence mais, desde o momento em que a partilhas comigo ou com outros amigos… Fazia-te bem divulgá-la… Mas eu respeito inteiramente a tua decisão…

PS – O Comandante Gazela já fez confidências deste tipo ao A. Marques Lopes, e que este revelou no nosso blogue… Vão de novo encontrar-se em Abril próximo.


3. Um minuto depois, na volta do e-mail, o Mário reconsiderou a sua decisão anterior:

Guiné > Brá > 1965 > O Mário Dias, sargento comando...

© Mário Dias(2005)

Caro Luis: De acordo. Pode então ser divulgada, embora continue com algun receio de incompreensões. Que se danem, como dizem os brasileiros. Um abraço

(...) Foi assim:

Estando com o meu grupo de comandos no Xitole, sensivelmente em meados de 1965, fomos fazer uma patrulha de reconhecimento pois o inimigo há muito mostrava sinais de intensificar a sua actividade na região. Porém, as informações eram escassas. Desconhecia-se com precisão por onde andavam os guerrilheiros e as possíveis localizações dos acampamentos. Por tal facto, foi-nos dada a missão de efectuar um reconhecimento ofensivo, tentando localizar o destruir o inimigo.

Por volta das 3 horas da madrugada saímos no maior silêncio, a pé, pela estrada que liga o Xitole a Mampatá, Aldeia Formosa, etc. Alcançada a bifurcação da picada para Amedalai, internámo-nos no mato, constituido quase só por palmeiras mas bastante denso, e aí aguardámos o romper do dia.

Reiniciada a marcha, com as habituais cautelas e as indispensáveis medidas de segurança, fomos progredindo pelo mato, acompanhando de perto o traçado da picada.

Andar um pouco, parar, escutar, analisar pistas e vestígios de presença humana, comsumiu uma boa parte da manhã. Era quase meio dia quando ouvimos, vindos da nossa esquerda, alguns tiros. Não foram muitos.Por não terem sido dirigidos com precisão e sobretudo com intenção de nos atingir, concluimos que se tratava de tiros de reconhecimento (eles também os faziam). Devem ter presentido algo mas não tinham a certeza da nossa posição nem, possivelmente, da nossa presença.

Desta forma, e como nos interessava obter informações sobre a actividade do inimigo, deixei o grupo instalado defensivamente e fui, com a minha equipa (5 homens) em direcção à zona de onde os tiros tinham partido fazer o reconhecimento. O que essa progressão teve de cautelas, expectativas e adrenalina é fácil de imaginar para quen viveu situações semelhantes.

De repente, ouvimos pessoas a conversar e o ruido característico de movimentação. Querendo observar melhor o que se estava a passar, ergui-me acima do arbusto que me ocultava. Foi então que aconteceu. Do outro lado, a cerca de vinte ou trinta metros, um vulto se ergueu também e olhou na minha direcção. Espanto dele! Espanto meu! Era o Domingos Ramos.

Ficámos ambos como petrificados. Não falámos, apenas nos limitámos a sorrir e houve como que uma espécie de telepatia. Mas, mesmo sem falar, as expressões de contentamento de ambos (espero que ele tivesse entendido que também eu estava contente com o inesperadao mas feliz encontro) tornaram mágicos aqueles breves momentos que jamais esquecerei.

Mas era preciso regressar à terra. De imediato ouvi as suas ordens:
- Nó bai, nó bai -. E internou-se ainda mais, desparecendo na densa mata. Voltei para trás, para junto do resto do grupo:
- Não há problema. Era um pequeno grupo mas já fugiram.

E continuámos a patrulha sem mais percalços. Claro que este episódio não constou do relatório. E foi assim.

Um abraço

© Mário Dias
_______

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

3 comentários:

caçador disse...

boa tarde meus ex. camradas coisa linda que li do senhor mario dias que tambem já nao a garoto mas um comantario milagroso está aí gostei muito tambem estive em angola de 65 a 67 mas estou radicado no brasil quase á 43 anos irei fazer em outubro desse ano claro vou a portugal quase todo ano mas o aviao me mata tenho panico de entrar dentro do aviao tenho essa doença desde os 24 anos nao sei se peguei essa doença em angola mas se me quiser contatar e-mail a 214964@gmail.com meu nome guilherme brasil rio de janeiro e boa tarde ou g.necho@hotmail.com

Martinez disse...

amigo luis gostava de saber como posso contactar com camaradas que estiveram em moçambique na c.caç 3571 no ano de 1971. como proceder para chegar ate eles? Pode-me ajudar? OBRIGADO

Lô Baptista disse...

Senhor Luís Graça, será possivel descrever só e só vida e obra de Domingos Ramos? Gostariamos que o fizesse caso for possivel.
Obrigado por tudo aquilo que sabes sobre a vida de um grande heroi guineense.
Obrigado. para mais informações, escreva-me para: lolobaptista3@hotmail.com
Feliz Natal e um ano Novo Prospero.
Lô Baptista
Guiné-Bissau.