20 março 2006

Guiné 63/74 - DCXLII: Um domingo no Xitole (David Guimarães)


Texto do David Guimarães:


Luís: Não temos sangue de barata, é verdade, mas temos o gosto delas....

Lá, naquele aquartelamento onde vivi durante muito tempo (Xitole, sede da CART 2716 do BART 2917), a refeição principal era muitas vezes filete de cavala com arroz... À noite, eram cavalas com arroz. Sim, sempre os filetes, especialmente nos períodos de isolamento, em que não havia as colunas de reabastecimento de Bambadinca.

Esses períodos eram no meu tempo um descanso para a CCAÇ 12, especialmente para eles, que não nos vinham visitar ao Xitole. Pois era, quando a estrada se tornava intransitável, determinava-se, mandava-se publicar e pronto: não haveria colunas naquela época para o Xitole e consequentemente para o Saltinho...

Só que os do Saltinho, esses tinham coisas que vinham de Galomaro... E nós, pronto, tínhamos chuva, muita chuva... E, claro, tínhamos os filetes de cavala e ainda por cima os canhões sem recuo. Ai, senhor, que coisa, do outro lado do Corubal... Aproveitando a trovoada - ai, ai, ai! - aí vinha granada de canhão...

Já contei anteriormente, no blogue, os bombardeamentos a que fomos sujeitos, quando se experimentava o morteiro 107 mm. Era o 1º Sargento Calha, o instrutor: ai, até que enfim que me lembrei do nome do homem!... Instrução de manhã e à noite aulas práticas: aí vem o Nino e os seus canhões amestrados...

Porra, que aquilo só ouvido (e vivido) !... Passava a trovoada, acabavam as canhoadas e lá íamos nós: primeiro, uma cerveja para celebrar mais um fim de um aatque ou flagelação; e depois outra, para acalmar, deitar.... Ninguém ainda pensou que todos celebrávamos mais um dia, aquele em que não tinha morrido ninguém, com as granadas a cairem na pista e pronto...

Mesmo aí, depois disso tudo, ainda se ia à tabanca... Tudo bem e pronto, cada um com a sua... Só a guerra explica isto.... E, pronto, vamos à refeição da manhã.... Exactamente, lá andavam as baratas a passear no pão que íamos comer... E como elas fugiam, com um sopro, um beijo no pão e lá ia... Com café e era muito bom !

Eu muito gostava da refeição com baratas e tudo ... Saibam que acabamos todos por ter um pedaço de sangue de barata. Luís, é que elas eram tantas !... E mais: muitos comeram o pão com baratas sem ver. Nada mau, eu vi.... e comi!...

Era domingo, que bom !... No intervalo da chuva, vinha o sol... Não poucas vezes, aí vai o pessoal, uns para as tabancas vizinhas para além de Xitole, era norma, acção psico.... Levava-se um calção de banho ou então nem isso, nu mesmo... Cambessé! E vamos para o banho em Cussilinta, maravilha !...

Outros iam pavonear-se entre as bajudas do Xitole, na zona civil:
- Jamtum ! - A pronúncia era esta, e pronto, maço de cigarros, conversa com pessoal e logo à tarde temos o relato: o Benfica joga contra o Porto... Ena, coisa boa!... Punha-se umas calças de bombazina e, pronto, lá andávamos nós a passear a roupa uns para os outros, afinal... Elegantemente vestidos à moda europeia., aquela que tínhamos deixado cá...

O almoço hoje era galinha, que bom !... Era domingo, está visto, mas que bem mesmo, pão, vinho da Manutenção e o prato.... Cuidado, que o pão já não tinha baratas: elas só vinham de noite, curioso... E agora uma sesta e lá vem o relato, golo deste e golo daquele... E no Porto o Lemos já marcou dois... E depois parece que marcou mais dois!

Uns dias mais felizes, outros mais chateados, mais cerveja e ficava tudo por igual... Desculpem-me os benquistas mas eu fiquei muito contente, o Porto tinha ganho, até eu me senti rei, quando o verdadeiro Rei, de nome, era um camarada que vive por Azeitão, e até é benfiquista...

Bem, depois íamos recrear o futebol, fazer uma jogatana bem ao lado da pista... Que maravilha, ganhavam uns e perdiam os outros... Prenda ? Vamos lá todos beber depois do banho... E o domingo terminava assim, merda....

Olhávamos para o cifra - desculpem os de transmissões, os atiradores lá chamávamos isto mesmo ao cabo cripto que levava ao fim do dia um papel para o comandante de companhia:
- Não é que o gajo se deslocou pelas nove até ao Capitão ?! - Pensávamos nós - Mas se coluna não é, foda-se, que raio vai ele fazer com aquele papel na mão ?... Será que... já, com esta chuva ainda... !?

Por isso, os nativos já tinham colocado tantos sacos de coconote na entrada do aquartelamento... - Meus senhores - dizia o Capitão Espinha de Almeida -, amanhã há coluna - Não se contava mas parece que a estrada já está transitável e pronto. Estávamos no fim da época das chuvas, os grandes intervalos fizeram com que a estrada secasse o suficiente.
- Antes isso que uma operação, afinal, poça!, como passaríamos a bolanha???

Um abraço

David Guimarães

PS - E o pão até sabia mesmo a barata... E a coluna não foi ao Saltinho, deixou tudo no Xitole. Os do Saltinho é que fizeram depois uma coluna para virem buscar os géneros....

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