15 março 2006

Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Dezembro de 1969 > Pessoal da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) em fim de comissão, a caminho de Bissau... Na tropa, a velhice era um posto e um periquito um verme... O mato era o inferno, e Bissau as portas do paraíso... Daí a célebre letra da canção: "Periquito vai no mato / Que a velhice vai pra Bissau"... (LG)

© Humberto Reis (2006)




Dos cadernos do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612 (que esteve em Mansoa por escassos dias, cabendo-lhe a honra de arriar a nossa bandeira em 9 de Setembro de 1974, por ocasião da transferência de soberania do território para o PAIGC) (1).

Os periquitos do pós-guerra

Depois dum período de aclimatação do pessoal da minha Companhia à Guiné, no Cumeré, chegara a hora de cumprirmos a missão fulcral que ali nos levara: substituir a Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão 4612/72, que se encontrava em Mansoa há mais de dois anos.

Pelo que, naquele fim de tarde de Agosto de 1974, saímos do Cumeré numa ordenada coluna auto. Cerca de meia hora depois sentimos as viaturas a abrandar, e começamos a ouvir, cada vez mais clara e intensamente, longos e arrepiantes pios, semelhantes aos que soltam os pintaínhos:
- Piu, Piu, Piu!!!...- Ena, tanta passarada reunida nas copas das árvores aqui à volta, devem ser mais de mil bicos, que originam este chilrear infernal - pensei eu.

Pus a cabeça de fora da cobertura da Berliet para ver melhor. Não havia árvore nenhuma ali! Então, baixei a cabeça e vi aquilo.

Entre as imensas manifestações que me foram dadas ver (ao vivo!), esta foi inequivocamente uma das cenas mais impressionantes e marcantes que me aconteceram. Julguei, por largos momentos, ter entrado nos domínios dum mundo irreal de fantasia cinematográfica ianque (género Apocalipse Now). Excessivamente incrível para ser verídico.

Afinal a piadura toda, resultava da recepção que os duzentos e tal velhinhos, que íamos render – já bem bebidos, amontoados e dependurados uns nos outros -, nos recebiam em apoteose delirante, como mandava a praxe.

Para eles, nós – os periquitos ou piras -, éramos, para todos os efeitos, os mais reles, insignificantes e desprezíveis piras de toda a tropa da Guiné e do mundo inteiro.

Viam-se cartazes com diversos escritos alegóricos:

- Bem-vindos, periquitos, ao inferno dos vivos!
- Aqui, morrer é o único meio de voltares para casa mais cedo.
- Aqui entras de pé e vais pró Continente deitado num caixote, etc.

Também não faltava uma câmara de TV (uma imitação feita com um velho caixote de madeira), e as respectivas entrevistas fúnebres, extensas e desconexas.

O efeitos do álcool e dos vinte e muitos meses de mato faziam das suas. Os festejos eram ambíguos, umas vezes alegres, outras tétricos. Alguns soldados riam e choravam dizendo coisas macabro-hilariantes, com piadas de todos os tipos: disparatadas, indignificantes e, por vezes, insultuosas.

A imaginação vagueava por ali, vendo-se várias urnas fechadas (mais caixotes com cruzes desenhadas em cima) e simulações de funerais que, eventualmente, seriam dos nossos cadáveres…

Isto tudo passou-se já depois do 25 de Abril de 1974! Já a guerra tinha sido dada como finda! Isto não é ficção! Aconteceu mesmo!(3)

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Notas de L.G.

(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá

(...) Enfim, surge um aglomerado
De pavilhões pré-fabricados,
Cumeré, dizia uma placa,
Havia mato por todos os lados.

Após alojado e alimentado,
Acerquei-me da cerca de arame
E pelo que vi, constatei arrepiado:
“Isto aqui era o nosso Vietname”.

Dei umas voltas pelas tabancas
Naqueles dias de aclimatação,
Os velhinhos gozavam e diziam;
- Viv’à liberdade de circulação!

E, continuavam com as bocas:
- Ó periquitos, que por aí andais...
Aí fora, há umas semanas atrás...
O turra comia-vos, tal com’estais!

Aqueles velhinhos enrugados,
Tez enegrecida e voz de bagaço,
De idade, vinte e poucos anos
Pareciam talhados de puro aço.

Um dia, novo destino: Mansoa!
Er’a hora de rendermos o Batalhão
Depois... entregar tudo ao PAIGC!
Foi a nossa derradeira missão!
(...)

(3) Este testemunho do nosso ranger é muito interessante, obrigando-nos a reflectir e a especular sobre o estranho comportamento que atingia a velhice, completamente apanhada pelo clima, na hora da rendição pelos periquitos... Muitos de nós passaram por estas cenas, enquanto periquitos, e voltaram a repeti-las, enquanto velhinhos...

São uma extensão das violentas praxes dos militares, fundamentais para a criação do espírito de corpo e reforço da capacidade de resistência à exposição ao perigo, à captura pelo IN, à morte, à humilhação, à derrota... Julgo que do outro lado, do lado dos combatentes do PAIGC, também as havia: faz parte das culturas guerreiras (dos índios da América do Norte aos felupes do Cacheu)... A ideologia (revolucionária) não chegava para os homens (e as mulheres) do PAIGC darem a vida, arriscarem a sua integridade física, perderem a sua liberdade no caso de captura poelos tugas... Os tipos do PAIGC usavam mezinhos tal como os meus soldados fulas da CCAÇ 12...

Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné...

São também ritos de passagem: os mais velhos inciando os mais novos, transmitindo-lhes valores como solidariedade, coragem, determinação, sacrifício... Todos fomos heróis e cobardes, velhinos e periquitos, deuses e homens... O problema é que, quando desembarcámos no cais de ALcântara, em Lisboa, já não éramos mais os mesmos... Não se foi impunemente para a Guiné, para o mato, para a guerra, para aquela guerra... Recorde-se que muitos de nós tiveram, no mínimo, 36 meses de tropa... Ora três anos representam (ou representavam na época) 6% do tempo da nossa vida activa (dos 15 aos 65)...

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