20 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)


Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos... Bissau, 2006 (Edição de autor).

Nota de L.G.: Recordam-se que no último Natal recebemos uma prenda do Pepito que muito nos sensibilizou. Ele enviou-nos, para publicação no blogue, um dos contos, escritos pelo seu pai, já falecido, e que os filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz) decidiram reunir em livro. Em Fevereiro último conheci pessoalmente o Pepito (Carlos Schwarz), que me ofereceu o livro (2). Na altura comprometi-me a fazer uma pequena recensão bibliográfica e sobretudo a divulgá-lo pela nossa tertúlia e pelo nosso blogue.

Para já, aqui vai um primeiro apontamento biográfico sobre o autor, Artur Augusto Silva (1912-1983), extraído no essencial dos dados fornecidos na contracapa do livro:

(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) Ainda estudante, foi Director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) Na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) Licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) Em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) De 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura (dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, agora publicados, como o Zé Faneca, pescador da Nazaré);

(vii) Em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) Foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com Amilcar Cabral de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes;

(ix) Participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau;

(x) Visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;

(xi) Cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) Em 1966, "já em plena luta de libertação da Guiné", foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recorda "com dor e revolta";

(xiii) "Meses mais tarde, por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";

(xiv) "Em 1967, Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".

(xv) Em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) Foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) Faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.

Em homenagem ao autor (e ao seu filho e nosso amigo, Pepito, membro da nossa tertúlia, fundador e líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), publicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos: uma fabulosa fábula (passe o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1967, na Prisão de Caxias, tinha também uma crítica implícita à hipócrita política do Governo Português da época, em relação aos povos africanos que dominava; recorde-se que na época era Governador, de triste memória, o General Arnaldo Schultz, o mesmo que o expulsou da sua terra de adopção e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do braço longo armado da Pide.
__________

O Cativeiro dos Bichos , por Artur Augusto Silva (pp. 57-63)

A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.

Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.





Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos... Bissau, 2006 (Edição de autor).

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia -real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
- Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
- O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:

- As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
- O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - Gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava cruelda e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.

Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um palno.

Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.

Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
- Na verdade, na verdade, retorquiu o homem. Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a garnde assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hoitra e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a segui fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.

Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-Ia, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta ,ipobreza das partes.

Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.

É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social
que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

(Prisão de Caxias, 1966)

______

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)



(2) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

(...) "Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele ama com um coração muito grande), falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que é o Projecto Guiledje (com dj, como ele gosta que se escreva) - e, ainda, presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade, já aqui por nós justamente evocado

"Noutra ocasião, farei a recensão bibliográfica de O Cativeiro dos Bichos, um colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966. O livro acaba de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

"A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhece por Carlos Schwarz, nem quando foi ministro dos transportes num governo de transicção) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense" (...).

Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)


Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos... Bissau, 2006 (Edição de autor).

Nota de L.G.: Recordam-se que no último Natal recebemos uma prenda do Pepito que muito nos sensibilizou. Ele enviou-nos, para publicação no blogue, um dos contos, escritos pelo seu pai, já falecido, e que os filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz) decidiram reunir em livro. Em Fevereiro último conheci pessoalmente o Pepito (Carlos Schwarz), que me ofereceu o livro (2). Na altura comprometi-me a fazer uma pequena recensão bibliográfica e sobretudo a divulgá-lo pela nossa tertúlia e pelo nosso blogue.

Para já, aqui vai um primeiro apontamento biográfico sobre o autor, Artur Augusto Silva (1912-1983), extraído no essencial dos dados fornecidos na contracapa do livro:

(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) Ainda estudante, foi Director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) Na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) Licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) Em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) De 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura (dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, agora publicados, como o Zé Faneca, pescador da Nazaré);

(vii) Em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) Foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com Amilcar Cabral de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes;

(ix) Participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau;

(x) Visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;

(xi) Cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) Em 1966, "já em plena luta de libertação da Guiné", foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recorda "com dor e revolta";

(xiii) "Meses mais tarde, por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";

(xiv) "Em 1967, Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".

(xv) Em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) Foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) Faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.

Em homenagem ao autor (e ao seu filho e nosso amigo, Pepito, membro da nossa tertúlia, fundador e líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), publicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos: uma fabulosa fábula (passe o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1967, na Prisão de Caxias, tinha também uma crítica implícita à hipócrita política do Governo Português da época, em relação aos povos africanos que dominava; recorde-se que na época era Governador, de triste memória, o General Arnaldo Schultz, o mesmo que o expulsou da sua terra de adopção e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do braço longo armado da Pide.
__________

O Cativeiro dos Bichos , por Artur Augusto Silva (pp. 57-63)

A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.

Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.





Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos... Bissau, 2006 (Edição de autor).

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia -real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
- Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
- O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:

- As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
- O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - Gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava cruelda e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.

Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um palno.

Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.

Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
- Na verdade, na verdade, retorquiu o homem. Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a garnde assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hoitra e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a segui fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.

Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-Ia, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta ,ipobreza das partes.

Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.

É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social
que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

(Prisão de Caxias, 1966)

______

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)



(2) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

(...) "Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele ama com um coração muito grande), falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que é o Projecto Guiledje (com dj, como ele gosta que se escreva) - e, ainda, presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade, já aqui por nós justamente evocado

"Noutra ocasião, farei a recensão bibliográfica de O Cativeiro dos Bichos, um colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966. O livro acaba de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

"A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhece por Carlos Schwarz, nem quando foi ministro dos transportes num governo de transicção) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense" (...).

19 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste

Guiné > 1968 > O Rio Geba atravessa(va) várias regiões: na margem direita, para lá de Bissau, que é uma ilha, a região do Morés (Mansoa) e a a região Leste (Bafatá); na margem esquerda, a região de Quínara (Buba) e de novo a região leste, que começava a partir do Rio Corubal... De Mansoa a Bafatá não havia ligações terrestres, já que a estrada que ligava Bafatá a à capital, passando por Mansoa estava interdita... O único recurso, para as NT, era a via fluvial, como aconteceu com a CCAÇ 2405 (1968/69), transferida de Mansoa, cinco meses depois, em Dezembro de 1968 para o sub-sector de Galomaro (LG).

Foto do Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).




Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo com dois milícias nativos.

© Paulo Raposo (2006)



VIII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).


Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 25-26 (1).


Depois de cinco meses de Mansoa, em chão Balanta, fomos mandados para o leste, para o chão Fula.

O leste da Guiné era quase um planalto, a vegetação não era tão densa e o clima era menos húmido.

Como a estrada de Mansoa para Bafatá estava cortada por acção do inimigo, só podíamos lá chegar ou por avião ou pelo rio.

Foi posta à nossa disposição uma LDG, lancha de desembarque grande, e lá fomos rio acima. A hospitalidade do pessoal da Marinha deixava sempre muito a desejar. A lancha acostou ao Xime, e o resto do caminho fomos em coluna, para Bambadinca.

Sempre que se formava uma coluna neste itinerário, a companhia do Xime saía para fazer protecção lateral.

Chegámos a Bambadinca à noite, cheios de fome e de sono e lá dormimos já nem sei como. No dia seguinte mandaram-nos para um quartel próximo, Fá Mandinga, aonde descansámos enquanto aguardávamos novas ordens.

Deixo aqui uma história curiosa: Bambadinca ficava num ermo, de um dos lados descia para o rio Geba e na outra margem ficava uma grande bolanha.

Para protecção avançada, estava nessa bolanha um grupo de combate de tropa africana comandado pelo Alferes Beja Santos, que vinha connosco desde Mafra. Estavam instalados num aquartelamento de reduzidas dimensões (1). Tinham uns abrigos, mas dormiam em Tabancas, nome que era dado às casas construídas pelos nativos, que tinham telhado de colmo.

Numa bela noite, o nosso Beja Santos sofreu um ataque, em que o inimigo, para corrigir o tiro, fez fogo com munições tracejantes. Como resultado, o colmo incendiou-se e o pessoal perdeu todos os seus haveres com o fogo. No dia seguinte, aparecem na sede do Batalhão [2852] o nosso Beja Santos com alguns dos seus homens, todos em cuecas. Era assim que estavam quando tinha começado o ataque.

Como a guerra ainda não se tinha alastrado ao leste, era intenção do comando de Bafatá (3)reordenar a população e constituir núcleos de auto defesa. A ideia era brilhante, cativou a população, mas não alterou em nada o curso da guerra.

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. o último post, de 11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

(2) Comandante do Pel Caç Nat 52, destacado em Missirá a norte, de Bambadinca, no regulado do Cuor.

(3) Sede do Agrupamento 2957 (sendo o comandante o Coronel Hélio Felgas). A região leste estavva dividada em cimnco sectores, sendo o sector L1 o de Bambadinca, abrangendo o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole.

Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste

Guiné > 1968 > O Rio Geba atravessa(va) várias regiões: na margem direita, para lá de Bissau, que é uma ilha, a região do Morés (Mansoa) e a a região Leste (Bafatá); na margem esquerda, a região de Quínara (Buba) e de novo a região leste, que começava a partir do Rio Corubal... De Mansoa a Bafatá não havia ligações terrestres, já que a estrada que ligava Bafatá a à capital, passando por Mansoa estava interdita... O único recurso, para as NT, era a via fluvial, como aconteceu com a CCAÇ 2405 (1968/69), transferida de Mansoa, cinco meses depois, em Dezembro de 1968 para o sub-sector de Galomaro (LG).

Foto do Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).




Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo com dois milícias nativos.

© Paulo Raposo (2006)



VIII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).


Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 25-26 (1).


Depois de cinco meses de Mansoa, em chão Balanta, fomos mandados para o leste, para o chão Fula.

O leste da Guiné era quase um planalto, a vegetação não era tão densa e o clima era menos húmido.

Como a estrada de Mansoa para Bafatá estava cortada por acção do inimigo, só podíamos lá chegar ou por avião ou pelo rio.

Foi posta à nossa disposição uma LDG, lancha de desembarque grande, e lá fomos rio acima. A hospitalidade do pessoal da Marinha deixava sempre muito a desejar. A lancha acostou ao Xime, e o resto do caminho fomos em coluna, para Bambadinca.

Sempre que se formava uma coluna neste itinerário, a companhia do Xime saía para fazer protecção lateral.

Chegámos a Bambadinca à noite, cheios de fome e de sono e lá dormimos já nem sei como. No dia seguinte mandaram-nos para um quartel próximo, Fá Mandinga, aonde descansámos enquanto aguardávamos novas ordens.

Deixo aqui uma história curiosa: Bambadinca ficava num ermo, de um dos lados descia para o rio Geba e na outra margem ficava uma grande bolanha.

Para protecção avançada, estava nessa bolanha um grupo de combate de tropa africana comandado pelo Alferes Beja Santos, que vinha connosco desde Mafra. Estavam instalados num aquartelamento de reduzidas dimensões (1). Tinham uns abrigos, mas dormiam em Tabancas, nome que era dado às casas construídas pelos nativos, que tinham telhado de colmo.

Numa bela noite, o nosso Beja Santos sofreu um ataque, em que o inimigo, para corrigir o tiro, fez fogo com munições tracejantes. Como resultado, o colmo incendiou-se e o pessoal perdeu todos os seus haveres com o fogo. No dia seguinte, aparecem na sede do Batalhão [2852] o nosso Beja Santos com alguns dos seus homens, todos em cuecas. Era assim que estavam quando tinha começado o ataque.

Como a guerra ainda não se tinha alastrado ao leste, era intenção do comando de Bafatá (3)reordenar a população e constituir núcleos de auto defesa. A ideia era brilhante, cativou a população, mas não alterou em nada o curso da guerra.

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. o último post, de 11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

(2) Comandante do Pel Caç Nat 52, destacado em Missirá a norte, de Bambadinca, no regulado do Cuor.

(3) Sede do Agrupamento 2957 (sendo o comandante o Coronel Hélio Felgas). A região leste estavva dividada em cimnco sectores, sendo o sector L1 o de Bambadinca, abrangendo o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole.

Guiné 63/74 - DCCLXXIII: Saudações aos camaradas de Gandembel (Zé Teixeira)

Luís.

Saúdo com muita emoção a entrada do Idálio Reis. Faltava uma peça importante no nosso Blogue para melhor se compreender as asneiras que se fizeram na guerra da Guiné.

Como já tive ocasião de afirmar, os camaradas de Gandembel foram autênticos heróis à força, mas foram-no, como tantos outros.

É preciso fazer-se a história de Gandembel.

Obrigado, Idálio Reis. Bem vindo. Um abraço fraterno e cheio de saudade.

José Teixeira

Guiné 63/74 - DCCLXXIII: Saudações aos camaradas de Gandembel (Zé Teixeira)

Luís.

Saúdo com muita emoção a entrada do Idálio Reis. Faltava uma peça importante no nosso Blogue para melhor se compreender as asneiras que se fizeram na guerra da Guiné.

Como já tive ocasião de afirmar, os camaradas de Gandembel foram autênticos heróis à força, mas foram-no, como tantos outros.

É preciso fazer-se a história de Gandembel.

Obrigado, Idálio Reis. Bem vindo. Um abraço fraterno e cheio de saudade.

José Teixeira

18 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCLXXII: Dos comandos de Brá ao pelotão de fuzilamento (Virgínio Briote)

Guiné > Base Aérea de Bissalanca > 1966 > Grupo de comandos Os Vampiros, do Alf Mil Comando Briote > O Justo Nascimento é o primeiro da fila de trás, a contar da esquerda; e o Jamanca, o quarto. Foto: © Virgínio Briote(2006)


Guiné > Brá > 1965 > Jamanca e Justo, comandos do Grupo Os Vampiros, futuros graduados da 1ª Companhia de Comandos Africanos (1970/74)

Foto: © Virgínio Briote(2006)



Guiné > Bissau> Praça do Império > Escadaria do Palácio do Governador >1966 > O 1º Cabo Comando Jamanca a ser condecadorado pelo Coronel Kruz Abecassis. Em 1973 o tenente Jamanca era o comandante da CCAÇ 21: terá sido fuzilado em 1974 em Madina Colhido, perto do Xime (1) (LG).

Foto: © Virgínio Briote(2006)



Texto do Virgínio Briote que continua sendo membro, fidelíssimo, da nossa tertúlia, ao mesmo que vai produzindo os seus textos, pessoalíssimos, belíssimos, no seu blogue Tantas Vidas, as dele, as do Gil Duarte, as da Teresa, sempre a Teresa, as do Capitão Valentim, as do Capitão Leão, as de uma geração inteira, de homens e mulheres, que amaram e desamaram, viveram e morreram, lutaram e perderam, a Dora, a Clara, a Matilde, o Leonel, o Manaças, o Marcolino da Mata e tantos outros, figuras de carne e osso que povoaram Brá, Bissau, Mansoa, o norte, o sul, o leste, as bolanhas, as picadas, as matas... O retrato de uma geração que ele está a contruir, como um puzzle, da sua experiência, como comando, como homem, nos anos de 1965/66... Continua, camarada, que a gente também vai lá visitar-te: mais do que uma obrigação, é um prazer! (LG)

Caro Luís,

Venho a esta missa todos os dias, às vezes mais que uma vez por dia.

A questão dos militares guineenses que combateram do nosso lado continua ainda muito sensível. Qualquer interpretação que seja feita, corre sempre o risco de ficar incompleta, tantos dados ainda estão no segredo. E muitos de nós já os levaram com eles para a cova. Fica a história simplificada, que pode não ser completamente correcta, se dissermos que:

(i) Os fuzilamentos são incompreensíveis e não justificam as atrocidades que eventualmente alguns tenham praticado;

(ii) Os tempos a seguir à independência foram vulcânicos, ainda estávamos em plena guerra-fria, é conveniente lembrar;

(iii) Os militares guineenses eram portugueses, convém também não esquecer. E ficaram lá, porque as entidades que negociaram a transferência de poderes, os esqueceram, pura e simplesmente.

Mas admito que não tenha toda a informação.

Envio-te algumas fotos de 1965 e 66.

Um abraço

vb

_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

Guiné 63/74 - DCCLXXII: Dos comandos de Brá ao pelotão de fuzilamento (Virgínio Briote)

Guiné > Base Aérea de Bissalanca > 1966 > Grupo de comandos Os Vampiros, do Alf Mil Comando Briote > O Justo Nascimento é o primeiro da fila de trás, a contar da esquerda; e o Jamanca, o quarto. Foto: © Virgínio Briote(2006)


Guiné > Brá > 1965 > Jamanca e Justo, comandos do Grupo Os Vampiros, futuros graduados da 1ª Companhia de Comandos Africanos (1970/74)

Foto: © Virgínio Briote(2006)



Guiné > Bissau> Praça do Império > Escadaria do Palácio do Governador >1966 > O 1º Cabo Comando Jamanca a ser condecadorado pelo Coronel Kruz Abecassis. Em 1973 o tenente Jamanca era o comandante da CCAÇ 21: terá sido fuzilado em 1974 em Madina Colhido, perto do Xime (1) (LG).

Foto: © Virgínio Briote(2006)



Texto do Virgínio Briote que continua sendo membro, fidelíssimo, da nossa tertúlia, ao mesmo que vai produzindo os seus textos, pessoalíssimos, belíssimos, no seu blogue Tantas Vidas, as dele, as do Gil Duarte, as da Teresa, sempre a Teresa, as do Capitão Valentim, as do Capitão Leão, as de uma geração inteira, de homens e mulheres, que amaram e desamaram, viveram e morreram, lutaram e perderam, a Dora, a Clara, a Matilde, o Leonel, o Manaças, o Marcolino da Mata e tantos outros, figuras de carne e osso que povoaram Brá, Bissau, Mansoa, o norte, o sul, o leste, as bolanhas, as picadas, as matas... O retrato de uma geração que ele está a contruir, como um puzzle, da sua experiência, como comando, como homem, nos anos de 1965/66... Continua, camarada, que a gente também vai lá visitar-te: mais do que uma obrigação, é um prazer! (LG)

Caro Luís,

Venho a esta missa todos os dias, às vezes mais que uma vez por dia.

A questão dos militares guineenses que combateram do nosso lado continua ainda muito sensível. Qualquer interpretação que seja feita, corre sempre o risco de ficar incompleta, tantos dados ainda estão no segredo. E muitos de nós já os levaram com eles para a cova. Fica a história simplificada, que pode não ser completamente correcta, se dissermos que:

(i) Os fuzilamentos são incompreensíveis e não justificam as atrocidades que eventualmente alguns tenham praticado;

(ii) Os tempos a seguir à independência foram vulcânicos, ainda estávamos em plena guerra-fria, é conveniente lembrar;

(iii) Os militares guineenses eram portugueses, convém também não esquecer. E ficaram lá, porque as entidades que negociaram a transferência de poderes, os esqueceram, pura e simplesmente.

Mas admito que não tenha toda a informação.

Envio-te algumas fotos de 1965 e 66.

Um abraço

vb

_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

Guiné 63/74 - DCCLXXI: Do Porto a Bissau (18): Sadiu Camará, um sobrevivente (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O Zé Teixeira com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. A tabanca Lisboa, a 5 Km de Buba, era um antigo centro de treino do IN, de nome Sare Tuto... Aqui ainda vivem vários antigos combatentes do PAIGC... Sadiu Camará, antigo paraquedista, casou aqui com uma guerrilheira... Foi ele que mudou o nome da aldeia e ajudou a população como caçador... Uma história com final (quase) feliz. (LG)

© José Teixeira (2005)

Guiné-Bissau > Saltinho > Abril de 2006 > Saliu Camará, beafada, um antigo paraquedista português, um sobrevivente nato...

Foto: © A. Marques Lopes (2006)

1. Texto do A. Marques Lopes:

Já que se fala dos guineenses que estiveram ao lado da tropa portuguesa contra o PAIGC, vou contar-vos o que o Sadiu Camará, beafada, me contou a mim (1):

(i) tirou o curso de paraquedista em Tancos, 70/71, e regressou à Guiné na Comp.ª 122 do BCP;

(ii) com essa companhia participou em operações, fazendo especialmente de intérprete, participando, inclusive, em interrogatórios de prisioneiros; isto até ao 25 de Abril;

(iii) após esta data, fugiu de Bissau e foi para a zona de Fulacunda, embrenhando-se no mato durante seis meses, sobrevivendo com recurso à caça, raízes e frutos alimentícios;

(iv) durante esse período ajudou com as suas peças de caça as populações daquela zona, sendo aceite por eles;

(v) acabou por ser apanhado e esteve preso durante seis semanas: "levei muita porrada e passei muita fome", disse-me;

(vi) mataram vários que também estavam presos, mas a ele não o mataram porque tiveram em conta as ajudas por ele prestadas às populações;

(vii) perguntei-lhe, a propósito, quem é que tinha mandado fazer os fuzilamentos; disse-me, sem hesitações: "foi o Nino Vieira, que era comissário das Forças Armadas, o Gazela (comandante daquela zona, na altura, já falecido) e o Chico Té (nome de guerra de Francisco Mendes, morto em 1998, de forma violenta e em circunstâcias estranhas);

(viii) após ser libertado, inscreveu-se na Juventude Amilcar Cabral, onde esteve seis anos;

(ix) após deixar essa organização, acompanhou, como guia, durante dezoito anos, os técnicos do Centro de Conservação da Natureza (disse-me o nome de um deles, o dr. António Araújo);

(x) em 1998 foi incluído nas Forças Armadas da Guiné, ao lado de Ansumane Mané, como faz questão de frisar;

(xi) viveu na tabanca Sare Tuto, antiga base do PAIGC, na zona de Buba, aí casando com a guerrilheira Neura, beafada, e construíu, depois, uma tabanca, a que deu o nome de Lisboa, cujo actual chefe é Assume Cassamba, onde construíu um posto de recolha de água e um sistema de produção de sal; segundo ele, é ainda "consultor" (homem que faz coisas e apoia a população) dessa tabanca;

(xii) trabalha actualmente como guarda no Clube de Caça do Saltinho.

Outro percurso, como se vê.

A. Marques Lopes

PS - Disse-me o José Teixeira, após divulgação desta minha mensagem através de e-mail, que Sare Tuto é a tabanca Lisboa, nome mudado pelo Saliu Camará. E ele até tem fotografias dessa tabanca. A fundação a que o Camará se me referiu foi, pois, uma mudança de nome. Diz também o José Teixeira que ele é guia e pisteiro dos caçadores que vão ao Clube de Caça do Saltinho, e não guarda. Também o percebi mal. Fica a correcção.

_____________

Nota de L.G.:

(1) Por elementar precaucção (protecção das nossas fontes de informação e segurança das pessoas), perguntei ao António se podia publicar as (in)confidências sobre o Camará... "Haverá problemas de segurança ? O nosso blogue chega à Guiné, aos esbirros do Nino Vieira ?"...

Resposta pronta do nosso camarada:

Caro Luís:

Não me parece que haja problemas graves.

Primeiro, porque o Camará não tem papas na língua e conta isto que eu contei em frente de toda a gente, porque é um homem conceituado e querido junto das populações, sente-se seguro.

Segundo, porque muita gente ouvi na Guiné a dizer mal do Nino abertamente, sem peias, inclusive o jornal Gazeta, que se publica todos os dias em Bissau, trazia diariamente editorias altamente críticos ao Presidente, assinados por António Monteiro (o que muito me espantava), daí eu estar convencido que a situação não ficará como está durante muito tempo.

É talvez por isso que o Nino anda, actualmente, empenhado numa campanha de pacificação da sociedade guineense... E não me parece que os serviços de inteligência guineenses estejam tão avançados a ponto de vasculharem a Internet (...).

Guiné 63/74 - DCCLXXI: Do Porto a Bissau (18): Sadiu Camará, um sobrevivente (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O Zé Teixeira com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. A tabanca Lisboa, a 5 Km de Buba, era um antigo centro de treino do IN, de nome Sare Tuto... Aqui ainda vivem vários antigos combatentes do PAIGC... Sadiu Camará, antigo paraquedista, casou aqui com uma guerrilheira... Foi ele que mudou o nome da aldeia e ajudou a população como caçador... Uma história com final (quase) feliz. (LG)

© José Teixeira (2005)

Guiné-Bissau > Saltinho > Abril de 2006 > Saliu Camará, beafada, um antigo paraquedista português, um sobrevivente nato...

Foto: © A. Marques Lopes (2006)

1. Texto do A. Marques Lopes:

Já que se fala dos guineenses que estiveram ao lado da tropa portuguesa contra o PAIGC, vou contar-vos o que o Sadiu Camará, beafada, me contou a mim (1):

(i) tirou o curso de paraquedista em Tancos, 70/71, e regressou à Guiné na Comp.ª 122 do BCP;

(ii) com essa companhia participou em operações, fazendo especialmente de intérprete, participando, inclusive, em interrogatórios de prisioneiros; isto até ao 25 de Abril;

(iii) após esta data, fugiu de Bissau e foi para a zona de Fulacunda, embrenhando-se no mato durante seis meses, sobrevivendo com recurso à caça, raízes e frutos alimentícios;

(iv) durante esse período ajudou com as suas peças de caça as populações daquela zona, sendo aceite por eles;

(v) acabou por ser apanhado e esteve preso durante seis semanas: "levei muita porrada e passei muita fome", disse-me;

(vi) mataram vários que também estavam presos, mas a ele não o mataram porque tiveram em conta as ajudas por ele prestadas às populações;

(vii) perguntei-lhe, a propósito, quem é que tinha mandado fazer os fuzilamentos; disse-me, sem hesitações: "foi o Nino Vieira, que era comissário das Forças Armadas, o Gazela (comandante daquela zona, na altura, já falecido) e o Chico Té (nome de guerra de Francisco Mendes, morto em 1998, de forma violenta e em circunstâcias estranhas);

(viii) após ser libertado, inscreveu-se na Juventude Amilcar Cabral, onde esteve seis anos;

(ix) após deixar essa organização, acompanhou, como guia, durante dezoito anos, os técnicos do Centro de Conservação da Natureza (disse-me o nome de um deles, o dr. António Araújo);

(x) em 1998 foi incluído nas Forças Armadas da Guiné, ao lado de Ansumane Mané, como faz questão de frisar;

(xi) viveu na tabanca Sare Tuto, antiga base do PAIGC, na zona de Buba, aí casando com a guerrilheira Neura, beafada, e construíu, depois, uma tabanca, a que deu o nome de Lisboa, cujo actual chefe é Assume Cassamba, onde construíu um posto de recolha de água e um sistema de produção de sal; segundo ele, é ainda "consultor" (homem que faz coisas e apoia a população) dessa tabanca;

(xii) trabalha actualmente como guarda no Clube de Caça do Saltinho.

Outro percurso, como se vê.

A. Marques Lopes

PS - Disse-me o José Teixeira, após divulgação desta minha mensagem através de e-mail, que Sare Tuto é a tabanca Lisboa, nome mudado pelo Saliu Camará. E ele até tem fotografias dessa tabanca. A fundação a que o Camará se me referiu foi, pois, uma mudança de nome. Diz também o José Teixeira que ele é guia e pisteiro dos caçadores que vão ao Clube de Caça do Saltinho, e não guarda. Também o percebi mal. Fica a correcção.

_____________

Nota de L.G.:

(1) Por elementar precaucção (protecção das nossas fontes de informação e segurança das pessoas), perguntei ao António se podia publicar as (in)confidências sobre o Camará... "Haverá problemas de segurança ? O nosso blogue chega à Guiné, aos esbirros do Nino Vieira ?"...

Resposta pronta do nosso camarada:

Caro Luís:

Não me parece que haja problemas graves.

Primeiro, porque o Camará não tem papas na língua e conta isto que eu contei em frente de toda a gente, porque é um homem conceituado e querido junto das populações, sente-se seguro.

Segundo, porque muita gente ouvi na Guiné a dizer mal do Nino abertamente, sem peias, inclusive o jornal Gazeta, que se publica todos os dias em Bissau, trazia diariamente editorias altamente críticos ao Presidente, assinados por António Monteiro (o que muito me espantava), daí eu estar convencido que a situação não ficará como está durante muito tempo.

É talvez por isso que o Nino anda, actualmente, empenhado numa campanha de pacificação da sociedade guineense... E não me parece que os serviços de inteligência guineenses estejam tão avançados a ponto de vasculharem a Internet (...).

Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )

Guiné > Fronteira sul com a Guiné-Conacri > CCAÇ 2317 (1968/69) > Posição, no mapa de Guileje, das nossas posições em Gandembel e Ponte Balana, nas margens esquerda e direita e do Rio Balana, abandonadas em menos de um ano (Abril de 1968-Março de 1969).

Texto do Idálio Reis (ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)

Caro Luís Graça:

Não me contive perante a catadupa de missivas que o fora-nada vai recebendo. Assim, surge esta segunda mensagem, a reiterar com o tempo.

O seu fundamento serve tão-só para também dar o singelo contributo de um ex-alferes miliciano, a quem lhe foi dado a conhecer essa Guiné profunda, e que hoje vai sendo divulgada tão bem pelos companheiros da Tertúlia.

A forma que utilizo, com anexações, torna-se-me mais fácil, pois permite colmatar falhas/gralhas na escrita.

Até breve. Um cordial abraço a todos os companheiros do blogue. Idálio Reis.

Companheiros da Tertúlia Luisiana:

Os contributos que convergem para o nosso blogue, jorram a uma cadência invulgar, tais são a frequência e a intensidade com que nos surgem, surpreendem e entusiasmam, que acaba por me impulsionar a não prorrogar em demasiado, um tempo quedado no mutismo, seguramente a postura menos atenciosa e cordial.

Já tive a oportunidade de visionar o imenso arquivo já disponível, ainda sem o atento grau de leitura que o mesmo justifica e merece, mas que me permite ter uma noção generalizada do que efectivamente ele representa, consubstanciado numa antologia de diferenciadas narrativas de acontecimentos, inúmeros, variados, vívidos, espectrais, dos que um dia alguém lhes determinou que compulsivamente demandassem rumo a uma parcela pátria do continente africano contígua ao Golfo da Guiné.

Apesar de tudo, constato com alguma nostalgia, que o conteúdo do blogue ainda apresenta uma brecha para colmatar, pois o período de comissão em que por aí (sobre)vivi, correspondente aos anos de 1968/69, não detém o acervo memorial que a Guiné teve então o triste ensejo de testemunhar.

Contudo, é-me justo salientar aqui, o papel relevante que o José Teixeira da CCAÇ 2381 vem assumindo, em que refere pormenorizadamente muito das suas vivências e que circunstancialmente apresentam uma certa forma de identificação comum à da minha Companhia, na sua contemporaneidade, nos lugares e trilhos, nas vicissitudes e anseios. Para ele, que envidou esforços para me encontrar, um carinho muito especial.

Ao assumir como lema «um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana» (1), faço-o num claro propósito de fazer incidir as estórias que me comprometi escrever, mormente sobre este local; narrar alguns factos e feitos ocorridos para que não caiam no olvido, remoçar memórias arquivadas nos recônditos do fundo de um baú pessoal muito especial, para que se sinta o que foi a disforme inequidade da guerra da Guiné profunda, tão punitiva e pesarosa para muitos de nós.

Passados tantos anos, torna-se-me particularmente difícil aceitar que os Poderes deste País em nada contribuíssem para não se deixar cair no esquecimento o que a guerra colonial representou para a nossa geração, porventura por causa da sofrida e pungente hecatombe da Guiné, a fim de eventualmente nos quedarmos no assumir de um imposto estado de condescendência, e deste conformismo nada reivindicar para nada poder alcançar.

Guiné > Bissau > Brá > 1965 > O General Schultz (à esquerda). Governador Geral da Guiné, o brigadeiro Schultz foi promovido a general em 5 de Setembro de 1965. Foi substituído por Spínola em Maio de 1968. A seu lado, o Capitão Nuno Rubim, hoje coronel.

© Virgínio Briote (2005)



No dealbar de 1968, havia já uma zona a Sul, de relativa amplitude e fronteiriça à Guiné de Sekou Touré, principal sustentáculo do PAIGC, que estava vedada ao controlo das NT. Tal não obstou a que se quisesse ousar implantar, no eixo do chamado corredor de Guileje, que até era conhecido pelo corredor da morte, e que amplamente se sabia ser uma das principais vias de passagem de víveres e de armamento das forças inimigas, um posto militar fixo com o fim de impedir ou limitar as suas acções a nível do território.

No [cerne] desta determinação, constata-se sem margem para grandes dúvidas que o acéfalo estado-maior de Arnaldo Schulz, já inteiramente grudado ao estrito reduto de Bissau, não continha minimamente qualquer plano estratégico estruturado e coerente para o acerado conflito militar que se aguçava e recrudescia com o delongar do tempo sem tempo.

O envio de tropa para uma zona de fulcral importância logística para o PAIGC, que já tinha conseguido impedir a deslocação de colunas no troço da picada entre Aldeia Formosa e Guileje, mostrar-se-ia um fracasso rotundo para as NT, desastroso, implacável, cruel, como infelizmente se viria a constatar pela perda infinda de militares, que estimo em números de uma vintena de mortos e meia centena de feridos.

Malfadada Fortuna para quem coube tão adverso e fatídico destino. Um BCAÇ (2835), passados dois meses após a sua chegada, é desmembrado e disperso pela Província, com a CCS a sediar-se em Nova Lamego e 2 Companhias a tomarem rumo ao Sul da Província. Uma permanecerá longo tempo em Guileje e a minha (a 2317) viria a ser deslocalizada para as imediações do rio Balana, mais ou menos à semi-distância entre Guileje e Aldeia Formosa, com a função de aí se radicar a fim de construir de raiz um aquartelamento [Gandembel e Ponte Balana], mesmo junto à picada de ligação.

A inserção de Gandembel/Ponte Balana obrigou a uma natural implementação das forças do PAIGC, inclusive com a permanência do bigrupo de Nino Vieira e de colaborantes cubanos. E como resultado óbvio desta movimentação, os aquartelamentos periféricos viriam a ser coagidos a tomar procedimentos de maior esforço e empenho na precaução e vigilância das suas tropas, causando-lhes um acentuado desgaste físico e moral. Atente-se à quantidade dos militares que foram raptados nesta época.

Julgo hoje que o General Spínola, que chegara em fins de Maio de 1968 e após tomar conhecimento in loco do que a Província lhe poderia dar a mostrar, apercebeu-se claramente da situação militar e social que se lhe deparava. Se as directrizes dimanadas do Poder Central eram determinadam pela manutenção a todo o custo das colónias, sem quaisquer excepções, então haveria que encetar uma estratégia diferente da que grassava, mas que paradoxalmente não poderia antever os seus resultados. Mas que resultados?

E uma das suas resoluções de maior impacto em finais desse ano, foi o de mandar fazer abandonar as posições de Gandembel e de Madina do Boé (com uma funestíssima retirada). Assim, a odisseia da minha Companhia por este rincão, que começara a 8 de Abril de 1968, finalizava a 28 de Janeiro de 1969.

Este consumptivo período de quase dez meses, que obriga a um conjunto de homens sitiados, a ter que sobrepujar todas as infindas contrariedades, em pleno palco de uma guerra de guerrilha sem tréguas, acaba por fenecer ante uma julgada impotência para contrariar o desaire.

Tantos momentos dramáticos que nos deixaram marcas profundas de sofrimento: de amargura e desalento, de raiva e dor, de mágoas e pesadelos, de medos e agonias. Tantas mazelas do corpo e da alma, para homens em florescimento, a desencadearem perturbações que nos vêm vindo a avassalar sem míngua no seu perpétuo movimento, até que o determinismo da Lei da vida nos liberte de tais sujeições.

Os tempos de Gandembel, muito em especial a sua primeira parte, são de uma violência pessoal inusitada, agressiva, estarrecedora, inumana (2):

(i) De um trabalho ingente e penoso a obrigar ter a G3 sempre à mão enquanto os braços labutavam na construção das casernas-abrigo;

(ii) corpos lassos em cima de furados colchões de campanha assentes na terra dormitando dentro de buracos desprotegidos;

(iii) alimentados por uma comida difícil de tragar, metida em marmitas saburrosas em que o arroz e os produtos desidratados preponderavam;

(iv) sem água de qualidade para nos saciar e bastante para remoção da sujidade do pó que se inculcava pela pele que se tisnava com o tempo;

(iv) sem nenhuma assistência médica;

(v) sem o apoio de qualquer população indígena;

(vi) sem qualquer iluminação exterior que visionasse uma sombra estranha no negrume das noites, e o mais odioso e duro, sem o merecimento de qualquer comiseração, fortemente estrugidos por uma quase constância dos mais variados estampidos em resultado de um ror imenso dos insidiosos ataques inimigos.

Parece-nos que só dispúnhamos de uma salvaguarda, que nos poderia acolher nos momentos mais transidos: porventura, a vinda de algum helicóptero, se para tal tivesse condições para momentaneamente aterrar.

Houve um ligeiro lenitivo nos últimos tempos, pois o modo de construção das casernas permitia-nos obter uma outra segurança, e uma maior disponibilidade da água contribuía para um melhor asseio. Contudo, tudo isto conjugado, é objectivamente muito pouco ou quase nada. Não poderei esconder que já neste período, as colunas de reabastecimento quase se quedaram, mesmo as provenientes de Aldeia Formosa.

Ficávamos à mercê de transportes por héli ou do arremesso das Dorniers em sobrevoo.
Pois do que prometia a força humana, algo sempre sobrava desta dedicação sacrificada e dolente, a fim de nos permitir resistir sem vacilações ou soçobros. É que a agudização em crescendo das agruras, compenetrava-nos para a gravidade da situação em confronto, em que reconhecíamos não haver lugar para consentir a mínima imprevidência ou tergiversação ao inimigo, pois que num qualquer instante poderia surgir a iminência de um surpreso confronto de proporções desmesuradas, que só uma indómita vontade, um acto mais corajoso ou a persistência do combate com maior denodo, os impediria de atingir alguns dos seus propósitos. Aclararei em mensagens sequentes muito destes insólitos acontecimentos.

Por isso, já comecei a identificar situações vividas e a indagar-lhes pormenores, para intentar coligir bastantes apontamentos a fim de poder escrever esta história de Gandembel/Ponte Balana, se para tanto não me faltar a requerida habilidade, e que este blogue acabe por ser um verdadeiro e real repositório do que o Luís Graça em tanto se tem empenhado.

Já que falei nessas duas datas, que representam em meu entendimento, a mais longa operação militar que se desenrolou naquele espaço de tempo, desejaria sublinhar o seguinte: de Guileje, a 8 de Abril de 1968 parte uma imensa coluna de reabastecimentos e de materiais de construção, com a protecção de uma Companhia – julgo que a própria CART 1613 - o companheiro José Neto poderá aqui dar-nos uma ajudam - , seguindo a picada em direcção a Norte, que viria já ao entardecer a estacionar junto ao corredor de Guileje [o mapa de Guileje de 1956, identifica bem o local]; a noite, passada debaixo das GMCs e dos Unimogs, foi aterrorizadora, com ataques quase contínuos de armas ligeiras e pesadas e de morteiros.

Talvez por este facto (!) e porque o acesso à água ficava relativamente longe, a coluna deslocou-se na madrugada seguinte mais para norte, sitiando-se então do lado esquerdo da picada, na margem esquerda do rio Balana e a cerca de 300/400 metros do seu leito. Estava escolhido o local para aí se construir o aquartelamento de Gandembel e depressa se abriu um caminho para diariamente se procurar água que o Balana pouco cedia na época seca.

A imagem anexa clarifica bem a localização de Gandembel e de Ponte Balana, com o caminho para o rio Balana e de ligação aos 2 postos. Ponte Balana era um pequeno fortim guardado a nível de um grupo de combate, a fim de viabilizar a defesa da ponte sobre o rio Balana, que foi necessário operacionalizar, dado que todos os pontões estavam destruídos.

Quanto ao dia 28 de Março de 1969, abandona-se um aquartelamento, deixando de pé apenas 8 casernas-abrigo e uma série de minas anti-pessoais de protecção envolvendo o arame farpado e um fortim mais junto ao rio Balana. Talvez que ainda tivessem sobrado fantasmas, as sombras que cada um à sua maneira lá deixou e que tantas vezes nos assolam.

A coluna fez-se até Aldeia Formosa sem quaisquer incidentes, nem mesmo em Changue-Iaia (um dos locais mais fatídicos desta longa odisseia).

Contudo, há um facto insólito a reter dessa noite. Já refeitos em Aldeia, em que Gandembel e Ponte Balana ficariam para sempre submergidos no breu da escuridade, ouvimos que esse desolado local fora violentamente flagelado. E nós, já longe da imprevisível consequência dos impactes, esboçámos um sorriso de pasmo e interrogámo-nos ante uma dúvida que jamais terá resposta: será que os guerrilheiros do PAIGC não quiseram saudar esta fuga, com uma salva à sua moda?!

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

(2) Mesmo assim, havia lugar para o humor... Nos primeiros tempos da minha comissão, em Contuboel e depois em Bambadinca (CCAÇ 12, 1969/71), Gandembel era, com Madina do Boé, um dos lugares mais míticos e fantasmagóricos do sul... O hino de Gandembel (cuha autoria se desconhece) era cantarolado por nós, como se fosse uma espécie de talismã, mezinho ou ritual de exorcismo... Fico muito sensibilizado e agradecido ao Idálio pelo este testemunho que cala fundo na caserna dos tertulianos... Não pares de escrever, camarada! Deixa fluir as tuas memórias, como se fossem águas barrentas do Rio Balana, em plena época das chuvas. Se não fores tu, se não formos nós, os fantasmas que ainda pairam por Gandembel e Ponte Balana nunca não mais terem sossego... Vd post de Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel

Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )

Guiné > Fronteira sul com a Guiné-Conacri > CCAÇ 2317 (1968/69) > Posição, no mapa de Guileje, das nossas posições em Gandembel e Ponte Balana, nas margens esquerda e direita e do Rio Balana, abandonadas em menos de um ano (Abril de 1968-Março de 1969).

Texto do Idálio Reis (ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)

Caro Luís Graça:

Não me contive perante a catadupa de missivas que o fora-nada vai recebendo. Assim, surge esta segunda mensagem, a reiterar com o tempo.

O seu fundamento serve tão-só para também dar o singelo contributo de um ex-alferes miliciano, a quem lhe foi dado a conhecer essa Guiné profunda, e que hoje vai sendo divulgada tão bem pelos companheiros da Tertúlia.

A forma que utilizo, com anexações, torna-se-me mais fácil, pois permite colmatar falhas/gralhas na escrita.

Até breve. Um cordial abraço a todos os companheiros do blogue. Idálio Reis.

Companheiros da Tertúlia Luisiana:

Os contributos que convergem para o nosso blogue, jorram a uma cadência invulgar, tais são a frequência e a intensidade com que nos surgem, surpreendem e entusiasmam, que acaba por me impulsionar a não prorrogar em demasiado, um tempo quedado no mutismo, seguramente a postura menos atenciosa e cordial.

Já tive a oportunidade de visionar o imenso arquivo já disponível, ainda sem o atento grau de leitura que o mesmo justifica e merece, mas que me permite ter uma noção generalizada do que efectivamente ele representa, consubstanciado numa antologia de diferenciadas narrativas de acontecimentos, inúmeros, variados, vívidos, espectrais, dos que um dia alguém lhes determinou que compulsivamente demandassem rumo a uma parcela pátria do continente africano contígua ao Golfo da Guiné.

Apesar de tudo, constato com alguma nostalgia, que o conteúdo do blogue ainda apresenta uma brecha para colmatar, pois o período de comissão em que por aí (sobre)vivi, correspondente aos anos de 1968/69, não detém o acervo memorial que a Guiné teve então o triste ensejo de testemunhar.

Contudo, é-me justo salientar aqui, o papel relevante que o José Teixeira da CCAÇ 2381 vem assumindo, em que refere pormenorizadamente muito das suas vivências e que circunstancialmente apresentam uma certa forma de identificação comum à da minha Companhia, na sua contemporaneidade, nos lugares e trilhos, nas vicissitudes e anseios. Para ele, que envidou esforços para me encontrar, um carinho muito especial.

Ao assumir como lema «um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana» (1), faço-o num claro propósito de fazer incidir as estórias que me comprometi escrever, mormente sobre este local; narrar alguns factos e feitos ocorridos para que não caiam no olvido, remoçar memórias arquivadas nos recônditos do fundo de um baú pessoal muito especial, para que se sinta o que foi a disforme inequidade da guerra da Guiné profunda, tão punitiva e pesarosa para muitos de nós.

Passados tantos anos, torna-se-me particularmente difícil aceitar que os Poderes deste País em nada contribuíssem para não se deixar cair no esquecimento o que a guerra colonial representou para a nossa geração, porventura por causa da sofrida e pungente hecatombe da Guiné, a fim de eventualmente nos quedarmos no assumir de um imposto estado de condescendência, e deste conformismo nada reivindicar para nada poder alcançar.

Guiné > Bissau > Brá > 1965 > O General Schultz (à esquerda). Governador Geral da Guiné, o brigadeiro Schultz foi promovido a general em 5 de Setembro de 1965. Foi substituído por Spínola em Maio de 1968. A seu lado, o Capitão Nuno Rubim, hoje coronel.

© Virgínio Briote (2005)



No dealbar de 1968, havia já uma zona a Sul, de relativa amplitude e fronteiriça à Guiné de Sekou Touré, principal sustentáculo do PAIGC, que estava vedada ao controlo das NT. Tal não obstou a que se quisesse ousar implantar, no eixo do chamado corredor de Guileje, que até era conhecido pelo corredor da morte, e que amplamente se sabia ser uma das principais vias de passagem de víveres e de armamento das forças inimigas, um posto militar fixo com o fim de impedir ou limitar as suas acções a nível do território.

No [cerne] desta determinação, constata-se sem margem para grandes dúvidas que o acéfalo estado-maior de Arnaldo Schulz, já inteiramente grudado ao estrito reduto de Bissau, não continha minimamente qualquer plano estratégico estruturado e coerente para o acerado conflito militar que se aguçava e recrudescia com o delongar do tempo sem tempo.

O envio de tropa para uma zona de fulcral importância logística para o PAIGC, que já tinha conseguido impedir a deslocação de colunas no troço da picada entre Aldeia Formosa e Guileje, mostrar-se-ia um fracasso rotundo para as NT, desastroso, implacável, cruel, como infelizmente se viria a constatar pela perda infinda de militares, que estimo em números de uma vintena de mortos e meia centena de feridos.

Malfadada Fortuna para quem coube tão adverso e fatídico destino. Um BCAÇ (2835), passados dois meses após a sua chegada, é desmembrado e disperso pela Província, com a CCS a sediar-se em Nova Lamego e 2 Companhias a tomarem rumo ao Sul da Província. Uma permanecerá longo tempo em Guileje e a minha (a 2317) viria a ser deslocalizada para as imediações do rio Balana, mais ou menos à semi-distância entre Guileje e Aldeia Formosa, com a função de aí se radicar a fim de construir de raiz um aquartelamento [Gandembel e Ponte Balana], mesmo junto à picada de ligação.

A inserção de Gandembel/Ponte Balana obrigou a uma natural implementação das forças do PAIGC, inclusive com a permanência do bigrupo de Nino Vieira e de colaborantes cubanos. E como resultado óbvio desta movimentação, os aquartelamentos periféricos viriam a ser coagidos a tomar procedimentos de maior esforço e empenho na precaução e vigilância das suas tropas, causando-lhes um acentuado desgaste físico e moral. Atente-se à quantidade dos militares que foram raptados nesta época.

Julgo hoje que o General Spínola, que chegara em fins de Maio de 1968 e após tomar conhecimento in loco do que a Província lhe poderia dar a mostrar, apercebeu-se claramente da situação militar e social que se lhe deparava. Se as directrizes dimanadas do Poder Central eram determinadam pela manutenção a todo o custo das colónias, sem quaisquer excepções, então haveria que encetar uma estratégia diferente da que grassava, mas que paradoxalmente não poderia antever os seus resultados. Mas que resultados?

E uma das suas resoluções de maior impacto em finais desse ano, foi o de mandar fazer abandonar as posições de Gandembel e de Madina do Boé (com uma funestíssima retirada). Assim, a odisseia da minha Companhia por este rincão, que começara a 8 de Abril de 1968, finalizava a 28 de Janeiro de 1969.

Este consumptivo período de quase dez meses, que obriga a um conjunto de homens sitiados, a ter que sobrepujar todas as infindas contrariedades, em pleno palco de uma guerra de guerrilha sem tréguas, acaba por fenecer ante uma julgada impotência para contrariar o desaire.

Tantos momentos dramáticos que nos deixaram marcas profundas de sofrimento: de amargura e desalento, de raiva e dor, de mágoas e pesadelos, de medos e agonias. Tantas mazelas do corpo e da alma, para homens em florescimento, a desencadearem perturbações que nos vêm vindo a avassalar sem míngua no seu perpétuo movimento, até que o determinismo da Lei da vida nos liberte de tais sujeições.

Os tempos de Gandembel, muito em especial a sua primeira parte, são de uma violência pessoal inusitada, agressiva, estarrecedora, inumana (2):

(i) De um trabalho ingente e penoso a obrigar ter a G3 sempre à mão enquanto os braços labutavam na construção das casernas-abrigo;

(ii) corpos lassos em cima de furados colchões de campanha assentes na terra dormitando dentro de buracos desprotegidos;

(iii) alimentados por uma comida difícil de tragar, metida em marmitas saburrosas em que o arroz e os produtos desidratados preponderavam;

(iv) sem água de qualidade para nos saciar e bastante para remoção da sujidade do pó que se inculcava pela pele que se tisnava com o tempo;

(iv) sem nenhuma assistência médica;

(v) sem o apoio de qualquer população indígena;

(vi) sem qualquer iluminação exterior que visionasse uma sombra estranha no negrume das noites, e o mais odioso e duro, sem o merecimento de qualquer comiseração, fortemente estrugidos por uma quase constância dos mais variados estampidos em resultado de um ror imenso dos insidiosos ataques inimigos.

Parece-nos que só dispúnhamos de uma salvaguarda, que nos poderia acolher nos momentos mais transidos: porventura, a vinda de algum helicóptero, se para tal tivesse condições para momentaneamente aterrar.

Houve um ligeiro lenitivo nos últimos tempos, pois o modo de construção das casernas permitia-nos obter uma outra segurança, e uma maior disponibilidade da água contribuía para um melhor asseio. Contudo, tudo isto conjugado, é objectivamente muito pouco ou quase nada. Não poderei esconder que já neste período, as colunas de reabastecimento quase se quedaram, mesmo as provenientes de Aldeia Formosa.

Ficávamos à mercê de transportes por héli ou do arremesso das Dorniers em sobrevoo.
Pois do que prometia a força humana, algo sempre sobrava desta dedicação sacrificada e dolente, a fim de nos permitir resistir sem vacilações ou soçobros. É que a agudização em crescendo das agruras, compenetrava-nos para a gravidade da situação em confronto, em que reconhecíamos não haver lugar para consentir a mínima imprevidência ou tergiversação ao inimigo, pois que num qualquer instante poderia surgir a iminência de um surpreso confronto de proporções desmesuradas, que só uma indómita vontade, um acto mais corajoso ou a persistência do combate com maior denodo, os impediria de atingir alguns dos seus propósitos. Aclararei em mensagens sequentes muito destes insólitos acontecimentos.

Por isso, já comecei a identificar situações vividas e a indagar-lhes pormenores, para intentar coligir bastantes apontamentos a fim de poder escrever esta história de Gandembel/Ponte Balana, se para tanto não me faltar a requerida habilidade, e que este blogue acabe por ser um verdadeiro e real repositório do que o Luís Graça em tanto se tem empenhado.

Já que falei nessas duas datas, que representam em meu entendimento, a mais longa operação militar que se desenrolou naquele espaço de tempo, desejaria sublinhar o seguinte: de Guileje, a 8 de Abril de 1968 parte uma imensa coluna de reabastecimentos e de materiais de construção, com a protecção de uma Companhia – julgo que a própria CART 1613 - o companheiro José Neto poderá aqui dar-nos uma ajudam - , seguindo a picada em direcção a Norte, que viria já ao entardecer a estacionar junto ao corredor de Guileje [o mapa de Guileje de 1956, identifica bem o local]; a noite, passada debaixo das GMCs e dos Unimogs, foi aterrorizadora, com ataques quase contínuos de armas ligeiras e pesadas e de morteiros.

Talvez por este facto (!) e porque o acesso à água ficava relativamente longe, a coluna deslocou-se na madrugada seguinte mais para norte, sitiando-se então do lado esquerdo da picada, na margem esquerda do rio Balana e a cerca de 300/400 metros do seu leito. Estava escolhido o local para aí se construir o aquartelamento de Gandembel e depressa se abriu um caminho para diariamente se procurar água que o Balana pouco cedia na época seca.

A imagem anexa clarifica bem a localização de Gandembel e de Ponte Balana, com o caminho para o rio Balana e de ligação aos 2 postos. Ponte Balana era um pequeno fortim guardado a nível de um grupo de combate, a fim de viabilizar a defesa da ponte sobre o rio Balana, que foi necessário operacionalizar, dado que todos os pontões estavam destruídos.

Quanto ao dia 28 de Março de 1969, abandona-se um aquartelamento, deixando de pé apenas 8 casernas-abrigo e uma série de minas anti-pessoais de protecção envolvendo o arame farpado e um fortim mais junto ao rio Balana. Talvez que ainda tivessem sobrado fantasmas, as sombras que cada um à sua maneira lá deixou e que tantas vezes nos assolam.

A coluna fez-se até Aldeia Formosa sem quaisquer incidentes, nem mesmo em Changue-Iaia (um dos locais mais fatídicos desta longa odisseia).

Contudo, há um facto insólito a reter dessa noite. Já refeitos em Aldeia, em que Gandembel e Ponte Balana ficariam para sempre submergidos no breu da escuridade, ouvimos que esse desolado local fora violentamente flagelado. E nós, já longe da imprevisível consequência dos impactes, esboçámos um sorriso de pasmo e interrogámo-nos ante uma dúvida que jamais terá resposta: será que os guerrilheiros do PAIGC não quiseram saudar esta fuga, com uma salva à sua moda?!

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

(2) Mesmo assim, havia lugar para o humor... Nos primeiros tempos da minha comissão, em Contuboel e depois em Bambadinca (CCAÇ 12, 1969/71), Gandembel era, com Madina do Boé, um dos lugares mais míticos e fantasmagóricos do sul... O hino de Gandembel (cuha autoria se desconhece) era cantarolado por nós, como se fosse uma espécie de talismã, mezinho ou ritual de exorcismo... Fico muito sensibilizado e agradecido ao Idálio pelo este testemunho que cala fundo na caserna dos tertulianos... Não pares de escrever, camarada! Deixa fluir as tuas memórias, como se fossem águas barrentas do Rio Balana, em plena época das chuvas. Se não fores tu, se não formos nós, os fantasmas que ainda pairam por Gandembel e Ponte Balana nunca não mais terem sossego... Vd post de Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel

Guiné 63/74 - DCCLXIX: O batalhão do 'corredor da morte' (Nuno Rubim)

Pendurado no blogue, em lista de espera, já com mais de duas semanas, tenho aqui uma mensagem do Coronel Nuno Rubim, que me chegou por e-mail do Virgínio Briote. A questão então levantada (tentativa de fixar um batalhão no 'corredor da morte' entre Gambembel e Guileje, ainda no tempo do Arnaldo Schultz) acaba por ser respondida no post a seguir, assinado pelo Idálio Reis. L.G.

Caro Luís,

O Cor Nuno Rubim mandou-me uma mensagem que transcrevo:

"Uma das questões que para mim constituiu sempre um mistério foi a tentativa de se instalar um Batalhão no corredor de Guileje, em Gadembel, já depois de eu ter regressado ao puto. Julgo que esse projecto ainda se iniciou, mas terá sido de curta duração.

"No site do Dr. Luis Graça encontrei uma pequena referência a essa questão e enviei um email, que não teve resposta, para o endereço aí indicado.
Tem conhecimento do caso ?"

Recebeste a mensagem do Cor Rubim? Bom regresso de férias.
Um abraço,
vb

Guiné 63/74 - DCCLXIX: O batalhão do 'corredor da morte' (Nuno Rubim)

Pendurado no blogue, em lista de espera, já com mais de duas semanas, tenho aqui uma mensagem do Coronel Nuno Rubim, que me chegou por e-mail do Virgínio Briote. A questão então levantada (tentativa de fixar um batalhão no 'corredor da morte' entre Gambembel e Guileje, ainda no tempo do Arnaldo Schultz) acaba por ser respondida no post a seguir, assinado pelo Idálio Reis. L.G.

Caro Luís,

O Cor Nuno Rubim mandou-me uma mensagem que transcrevo:

"Uma das questões que para mim constituiu sempre um mistério foi a tentativa de se instalar um Batalhão no corredor de Guileje, em Gadembel, já depois de eu ter regressado ao puto. Julgo que esse projecto ainda se iniciou, mas terá sido de curta duração.

"No site do Dr. Luis Graça encontrei uma pequena referência a essa questão e enviei um email, que não teve resposta, para o endereço aí indicado.
Tem conhecimento do caso ?"

Recebeste a mensagem do Cor Rubim? Bom regresso de férias.
Um abraço,
vb